A Dança do Amor: Entre o Objeto e a Verdade ¶
(Frater אדני)
Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.
Introdução ¶
O amor sempre intrigou filósofos, poetas e místicos. Ele parece bailar entre o objeto – a pessoa ou coisa amada – e alguma espécie de verdade mais profunda revelada por esse laço. Amar alguém não é apenas perceber qualidades objetivas nesse indivíduo; é também projetar desejos, significados e buscar um sentido maior nessa relação. Em termos kantianos, poderíamos dizer que no amor enfrentamos o hiato entre o fenômeno (como a pessoa nos aparece) e o númeno ou coisa-em-si (a essência verdadeira que intuímos por trás das aparências). Segundo Immanuel Kant, não conhecemos a coisa-em-si diretamente, apenas as representações mediadas pela nossa mente. Assim, amar envolve tanto a realidade percebida do ser amado quanto uma verdade idealizada que aspiramos conhecer. Nesse contexto, surge a questão: estaria o amor revelando uma verdade transcendental ou enganando-nos com projeções subjetivas? Este ensaio explora essa “dança do amor” unindo perspectivas da filosofia ocidental – de pensadores como Nietzsche, Jung, Kant, Marco Aurélio, Hume, Berkeley, Huxley e Keynes – com os ensinamentos de Thelema, a filosofia criada por Aleister Crowley. Buscaremos mostrar como conceitos thelêmicos (como Verdadeira Vontade, Amor sob vontade, êxtase místico e superação do ego) podem enriquecer a compreensão filosófica do amor como uma força ao mesmo tempo pessoal e cósmica, objetivando harmonizar o amor terreno com uma Verdade transcendental.
Amor, percepção e realidade: do objeto sensível à verdade subjetiva ¶
Desde os empiristas britânicos aprendemos que a realidade “objetiva” nem sempre é acessível tal como imaginamos. David Hume argumentou que a razão é serva das paixões; em suas palavras, “a razão é escrava das paixões, e não pode aspirar a nenhuma outra função que não seja a de servir e obedecer a elas” [1]. Isso significa que nossas percepções e mesmo julgamentos de verdade estão coloridos por emoções e desejos. No amor, essa ideia é evidente: frequentemente enxergamos o objeto amado através de lentes idealizadas, movidos pelas paixões. George Berkeley, por sua vez, sustentou que “ser é ser percebido” (esse est percipi), sugerindo que a existência dos objetos está condicionada à percepção consciente[2]. Embora frequentemente classificada como especulativa, essa tese antecipa, em alguma medida, certas interpretações contemporâneas da Física — como aquelas que atribuem ao observador um papel constitutivo na formulação da realidade. Transposto para o campo afetivo, esse argumento sugere que o objeto amoroso é, em larga medida, uma construção perceptiva do amante: ama-se não apenas quem o outro é em essência, mas também — e talvez sobretudo — a imagem que dele se projeta.
Há aqui um paradoxo: buscamos a verdade da pessoa amada para além de nossas projeções, mas só acessamos fragmentos mediados pela subjetividade. Immanuel Kant apontaria que nunca apreendemos totalmente a essência alheia (númeno); lidamos com as aparências filtradas por nossas categorias mentais. Assim, o amante vive entre o objeto fenomênico (as qualidades observáveis do ser amado) e uma verdade numenal que pressente, mas não pode apreender integralmente. Essa consciência incompleta pode gerar tanto encanto quanto frustração – encanto, por intuirmos uma profundidade infinita no outro; frustração, por jamais possuirmos a verdade dele ou dela como gostaríamos.
Por outro lado, pensadores clássicos e estóicos enfatizaram a aceitação da realidade tal como é. Marco Aurélio, filósofo e imperador romano, aconselhou: “Aceita as coisas que o destino te traz, e ama as pessoas com quem o destino te uniu, mas fá-lo de todo o coração” [3]. Esse conselho estoico de amor fati (amor ao destino) lembra que há uma sabedoria em amar o que é real, em vez de se apegar apenas a ilusões. Aceitar o ser amado com suas imperfeições objetivas pode nos ancorar no presente, evitando a idolatria de uma ideia fictícia. No entanto, amar “de todo o coração” implica também investir genuinamente da própria subjetividade – é colocar algo de si (vontade, afeto, intenção) na relação com o outro.
Friedrich Nietzsche capturou outro aspecto desta dança ao proclamar que “Tudo que é feito por amor é feito além do bem e do mal” [4]. Ele sugere que o amor autêntico nos leva a transcender as convenções morais ordinárias. Quando amamos profundamente, nossos atos escapam à simples classificação de certo ou errado em termos convencionais – estão em um domínio “além do bem e do mal”, regidos por uma lógica própria. Nietzsche, crítico da moral burguesa, via no amor (e em outras paixões intensas) uma afirmação da vida e da vontade individual que rompe com a mediocridade. Aqui, o objeto amado torna-se uma espécie de valor absoluto para o amante, justificando ações que a fria racionalidade ou a moral comum poderiam julgar questionáveis. O amor nos coloca em contato com uma verdade interna – por exemplo, a verdade de nossos sentimentos mais sinceros ou de nosso caráter trágico – que desafia os padrões externos. Em Nietzsche também encontramos a ideia de amor ao destino: o amor fati, já mencionado, que ele descreveu como aceitar e amar cada momento da vida, incluindo dores e perdas, como algo necessário. Esse amor ao destino inclui amar as pessoas e eventos designados pelo curso da vida, ecoando o estoicismo de Marco Aurélio e preparando terreno para a ideia de uma vontade profunda alinhada com a existência.
Vontade, ego e poder: o amor sob a ótica de Jung e outros pensadores ¶
Do ponto de vista psicológico, Carl Gustav Jung explorou como o amor envolve projeções do inconsciente. Muitas vezes nos apaixonamos por uma imagem interna – na terminologia junguiana, projeções da anima ou animus – vendo no outro qualidades de nossa própria psique. Esse processo pode levar à desilusão quando a imagem encontra a realidade do objeto amado. Entretanto, Jung via no encontro amoroso também uma oportunidade de integração psicológica: “O encontro de duas personalidades é como o contato de duas substâncias químicas: se houver reação, ambas se transformam”, afirmou ele certa vez. O amor verdadeiro pode catalisar a individuação – o processo de se tornar um si-mesmo mais completo – ao confrontar-nos com aspectos desconhecidos de nós espelhados no outro. Para Jung, havia também um equilíbrio necessário entre amor e poder: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.” [5]. Esse insight indica que o amor genuíno requer a superação do ego dominador. A necessidade de controlar (poder) é a antítese da entrega amorosa. Assim, para que o amor revele sua verdade – que é a união, a comunhão – o ego voluntarioso deve calar-se um pouco.
Aqui já despontam paralelos com a Verdadeira Vontade da filosofia de Thelema. Enquanto o ego comum busca poder pelo poder, a Verdadeira Vontade não é um capricho egoico, mas a expressão profunda do Ser em harmonia com o Universo. Jung e Nietzsche, cada um a seu modo, prepararam o terreno para valorizar essa vontade profunda: Nietzsche com o imperativo de o indivíduo tornar-se quem ele é (sua vontade de potência como autossuperação), Jung com a ideia de realizar o Si-mesmo. No amor, isso implicaria que amar verdadeiramente é também querer verdadeiramente o bem do outro e o próprio desenvolvimento, não por controle, mas por realização mútua.
David Hume, antes deles, já notara que emoção e vontade caminham juntas: a razão sozinha não move a ação; quem move a nossa vontade são as paixões. Logo, o ato de amar – embora possua componentes racionais, como compromisso e escolha – é eminentemente volitivo e emocional. Nosso “querer” está engajado no amor de modo muito mais profundo do que o mero raciocínio. Amar pode nos fazer revisitar nossas prioridades, reorganizar valores e até desafiar crenças antes tidas como verdades absolutas. Em outras palavras, o amor coloca em evidência a hierarquia: por mais que busquemos a verdade objetiva sobre o mundo, tendemos a querer e valorizar aquilo (ou aquele) que amamos acima dessas “verdades” – confirmando a tese humeana de que a razão serve ao coração[6]. Um exemplo disso na modernidade pode ser visto até em campos inesperados como a economia: John Maynard Keynes, embora economista, reconheceu em seus escritos pessoais a primazia dos estados internos sobre as atividades externas. Influenciado pelo filósofo G.E. Moore, Keynes e seus colegas do Círculo de Bloomsbury acreditavam que “nada importava, exceto os estados de espírito, principalmente os nossos próprios… [estes] consistiam em estados de contemplação apaixonada e intemporal” [7]. Ou seja, até um pensador pragmático como Keynes admitiu que, em última instância, são as experiências subjetivas de amor, beleza e contemplação (a verdade interior) que dão sentido à vida, mais do que os resultados práticos ou objetos materiais.
Thelema: Verdadeira Vontade e Amor sob vontade ¶
É na síntese dessas ideias que a filosofia thelêmica de Aleister Crowley ganha relevância aqui. Aiwass proclama na Lei de Thelema: “Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Amor é a lei, amor sob vontade” [8]. À primeira vista, “Faze o que tu queres” poderia soar como hedonismo irresponsável, mas Crowley esclarece que vontade aqui se refere à Verdadeira Vontade, não aos desejos triviais do ego. A Verdadeira Vontade estaria alinhada com o propósito essencial de cada ser, descoberto quando nos despimos de vícios, medos e ilusões transitórias. É a vocação profunda da alma, alinhada com a Vontade divina ou a ordem cósmica. Nesse sentido, fazer a própria Verdadeira Vontade aproxima-se de viver de acordo com a Natureza, como pregavam os estoicos, com a diferença de que, em Thelema, cada indivíduo tem uma natureza singular a cumprir.
Dentro dessa visão, Aiwass une amor e vontade de forma magistral. “Amor é a lei, amor sob vontade” significa que o amor é a força regente do universo, mas deve estar guiado pela Verdadeira Vontade. Em outras palavras, todo ato de amor (entendido aqui como toda forma de união, de atração) deve expressar e servir ao propósito mais profundo do ser. Em Thelema, cada ato ou movimento é um ato de amor, a união com alguma parte de Nuit; cada ato deve ser “sob vontade”, escolhido de forma a cumprir – e não contrariar – a verdadeira natureza do ser envolvido. Nuit, na cosmologia thelêmica, representa o infinito, o Todo do qual fazemos parte. Assim, amar alguém sob a égide da Verdadeira Vontade significaria unir-se a essa pessoa de forma a expandir ambos em direção ao seu propósito divino, em vez de sufocar ou desviar esse propósito. É amar não por carência ou apego cego (isso seria amor sem vontade, i.e., mera paixão egoísta), mas amar com consciência e intenção sagradas.
Na filosofia de Thelema, cada indivíduo é simbolicamente uma estrela: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”[9], e cada estrela se move em um caminho determinado sem interferência, isto é, cada ser tem sua órbita própria no Universo. O ideal thelêmico é que dois seres só se unam em amor para que ambos brilhem mais intensamente em seus caminhos, sem colisão. Quando duas estrelas dançam em órbita conjunta sem se destruírem, temos a imagem de amor sob vontade – uma parceria criativa e livre. Dessa forma, o amor pode se tornar não um fim em si mesmo estático, mas um caminho para a realização da vontade de ambos os envolvidos.
Observe-se que esse amor thelêmico ecoa a noção junguiana de que amor e poder não se misturam: apenas quando não buscamos dominar o outro é que podemos realmente nos unir a ele de forma significativa. “Amor sob vontade” implica que não se ama por necessidade de possuir (ego), mas sim como expressão do propósito de alma. Para Crowley, o êxtase do orgasmo ou da paixão, quando consagrado à divindade interior, podia abrir portas espirituais. Trata-se do amor elevado a rito, distinto do mero prazer casual. Em termos mais amplos, Crowley estava interessado em todas as formas de amor enquanto união: amor sexual, amor fraternal, amor pela humanidade, amor a um ideal – contanto que estivessem alinhadas com a Verdadeira Vontade e não dispersas em contradição. Esse alinhamento converte o amor em Ágape, o amor incondicional ou amor divino, equivalente gematricamente à palavra Thelema[10]. Mas entre o ímpeto ardente de Eros e a elevação mística de Ágape, há ainda o amor da convivência, da parceria e da confiança mútua: Philia. No contexto estoico, Marco Aurélio já reconhecia o valor do amor presente e real, vivido com plenitude no vínculo com aqueles que o destino nos traz; para Jung, Philia aparece na transformação psíquica que ocorre no contato genuíno entre duas personalidades, quando a relação se torna espelho e catalisador da individuação. Em Thelema, onde cada estrela tem sua órbita própria, Philia manifesta-se como a arte de amar sem interferir na rota do outro, sustentando com gentileza e respeito a liberdade alheia. É a dimensão do amor que torna possível a permanência: não busca dominar, não se esgota no êxtase, mas oferece sustentação ao processo. Amar sob vontade implica também cultivar esse laço fraterno e consciente, onde o carinho, a escuta e a presença tornam-se formas silenciosas de servir à Verdadeira Vontade – do outro e de si.
Resumindo, Thelema integra a dualidade objeto-versus-verdade do amor ao ensinar que o objeto amado (seja uma pessoa, um objetivo, uma atividade) deve corresponder à verdade de nossa Vontade mais íntima. Se amamos aquilo que realmente reflete nossa essência, então o amor deixa de ser ilusão para se tornar caminho de verdade. E mesmo quando há elementos de projeção ou mistério (pois o outro sempre terá um núcleo desconhecido), amar sob vontade significa abordar esse mistério com respeito e liberdade, sem tentar moldá-lo à força de nossos apegos. É um ideal exigente, mas libertador: amar plenamente porque é da nossa natureza amar daquele modo, e assim realizar o Divino que habita em nós e no ser amado.
Êxtase místico e união criativa: amor transcendendo o eu ¶
Um aspecto sublime tanto na filosofia ocidental quanto na tradição esotérica é a ideia de que o amor pode levar ao êxtase místico – uma experiência de transcendência do ego e comunhão com uma verdade superior. Aldous Huxley, escritor e filósofo, estudioso do misticismo, escreveu que percebemos, ainda que de forma obscura, que nas profundezas do nosso ser somos um com o fundamento divino da realidade, e ansiamos realizar essa identidade. Ele alertou, porém, contra a idolatria – projetar o ego ou parte da realidade como se fosse o Todo – o que nos separa ainda mais da verdade[11]. No contexto do amor, isso poderia significar: se endeusarmos o ser amado de forma cega (confundindo-o com o Absoluto), corremos risco de decepção e perdição; mas se através do amor conseguimos vislumbrar a unidade de nossas almas com algo maior (o divine ground de Huxley), então o amor cumpre sua função espiritual. Huxley via nas tradições místicas a convergência de ensinamentos: é possível amar, conhecer e tornar-se efetivamente uno com a Base divina, realizando uma união suprema. Esse estado é descrito por santos e místicos como uma perda dos sentidos de separatividade – o amante, o amado e Deus (ou a Verdade) tornam-se Um só.
Quando Crowley fala de unir-se “sob vontade” a Nuit (o Infinito), refere-se precisamente a transformar cada ato de amor num sacramento de união com o Todo. A união criativa mencionada no enunciado da proposta aponta para o fato de que do amor verdadeiro algo novo emerge: seja uma nova vida (literalmente na procriação), seja a expansão das possibilidades de ambos os seres. Podemos dizer que quando duas pessoas se amam e transcendem o ego por instantes de êxtase, elas acessam um estado de consciência alterada. O filósofo neoplatônico Plotino diria que as almas fazem contato com o Um; Jung poderia interpretar como contato com o Self arquetípico compartilhado; Huxley chamou de Mind at Large (a mente ampla não filtrada).
Fato é que nesse êxtase amoroso, seja ele sexual, espiritual ou estético, experimentamos a perda da sensação de ser um “eu” separado. Amor intenso muitas vezes leva a momentos em que nos “esquecemos de nós mesmos” – o tempo para, as fronteiras pessoais se dissolvem. Esse fenômeno, quando cultivado conscientemente, é similar às experiências místicas de samadhi no Yoga ou à união com o Tao no Taoísmo, em que o indivíduo perde a noção do ego e se torna uno com o fluxo universal da existência. A diferença é que no amor humano, o “outro” funciona como espelho e porta para o Infinito. Crowley reconhecia isso e, portanto, consagrava o amor (especialmente o eros) em rituais mágicos para transcender a dualidade. Não eu, mas nós; não nós, mas o Um – poderíamos resumir assim o ápice da dança do amor entre objeto e verdade. Primeiro o eu individual se foca no “nós” da relação, depois ambos, harmonizados, se elevam ao Um universal.
Nietzsche, que não era místico no sentido tradicional, ainda assim falava de um êxtase dionisíaco onde o indivíduo se funde no todo da vida. Ele via na paixão e na arte caminhos para romper a prisão do eu racional. Poderíamos conjecturar que um amor vivido plenamente, além do bem e do mal, tem algo de dionisíaco: quebra limites, recria valores, revitaliza a existência com significado.
Já Jung provavelmente interpretaria o êxtase de dois amantes como a conjunção dos opostos, meta da alquimia psicológica: a hieros gamos (união sagrada) entre o Sol e a Lua internos (X), refletida exteriormente na união dos parceiros. Essa união traria consigo a integração das polaridades da psique, resultando em criatividade, crescimento e até vislumbres do numinoso (o sagrado incognoscível).
Assim, o amor – quando entendido não apenas como emoção superficial, mas como força arquetípica – atua como ponte entre o humano e o divino. Ele começa muitas vezes com o encanto por um objeto (um corpo, uma personalidade, uma ideia) e pode culminar numa experiência da verdade universal do amor, denominada pelos místicos antigos como “Deus é Amor”. Aleister Crowley endossaria esta frase, acrescentando “e Deus é Vontade” – pois, Amor (Ágape) e Vontade (Thelema) são duas faces da mesma moeda sagrada. No clímax do amor sob vontade, os amantes tornam-se cocriadores com o divino: manifestam em suas vidas a alegria, a liberdade e a expansão da consciência que são sinais da realização da Verdadeira Vontade.
Conclusão ¶
A jornada que percorremos mostra que a tensão entre objeto e verdade no amor pode ser conciliada por uma visão mais elevada, na qual amor e vontade se unem. Os filósofos ocidentais nos deram ferramentas críticas: entender que o que amamos é filtrado por nossa percepção (Berkeley, Kant), reconhecer a potência avassaladora da paixão sobre a razão (Hume, Keynes), valorizar a autenticidade do amar para além das convenções morais (Nietzsche, Marco Aurélio) e perceber o requisito de abdicar do egoísmo pelo bem da união (Jung). A filosofia de Thelema, com seus conceitos de Verdadeira Vontade e Amor sob vontade, sintetiza muitos desses elementos e os projeta numa dimensão espiritual. Crowley nos convida a viver o amor como arte mágica, em que cada encontro é tanto terreno quanto celeste – um passo na dança cósmica das estrelas.
No palco do amor, o objeto amado é o parceiro de dança, com sua forma, suas cores e limites; a verdade é a música transcendental que guia os passos sem ser vista. Se dançarmos pensando apenas no objeto, arriscamos perder o compasso da música (isto é, absolutizamos algo parcial, caímos na idolatria ou na decepção); se focarmos apenas numa verdade abstrata, sem entregar-nos ao objeto concreto do amor, a dança se torna vazia, meramente conceitual. O segredo, então, está na harmonia: ao amar, entregar-se de coração (como recomendam os sábios estoicos e místicos) e simultaneamente orientar-se por uma intenção mais alta.
O amor, sob a perspectiva thelêmica, é Amor sob vontade – nem prisão cega aos sentidos, nem idealismo desencarnado, mas uma força integradora. É amar com toda a intensidade (Eros e Ágape combinados), porém com os olhos da consciência abertos para a finalidade divina desse amor. Essa finalidade pode ser simplesmente o crescimento mútuo, a felicidade compartilhada, ou algo grandioso como inspirar obras de arte, transformações sociais, despertar da alma. Como escreveu Crowley, quando seguimos a Verdadeira Vontade, temos “a inércia do universo” a nosso favor; e no domínio do amor isso se traduz em relacionamentos que fluem com uma energia quase mágica.
Concluímos que a dança do amor entre o objeto e a verdade alcança seu apogeu quando entendemos que objeto e verdade não são polos incompatíveis, mas parceiros de ritmo. O objeto amado nos ancora e dá substância à experiência; a verdade buscada nos eleva e dá sentido transcendente a ela. Nesse entrelaçamento, descobrimos que amar verdadeiramente alguém pode nos revelar verdades sobre nós mesmos e sobre o universo que nenhuma análise fria revelaria. E descobrimos também que a verdade última do amor talvez não resida nem no sujeito, nem no objeto isoladamente, mas no espaço entre os dois, na relação – esse laço invisível, porém real, onde “Dois que não são dois” podem vislumbrar o Um, ou o Nenhum. 0 = 2. Em suma, amar sob a orientação da Verdadeira Vontade é permitir que o Amor se torne caminho da Verdade – uma verdade viva, experienciada, que nos transforma e simultaneamente nos conecta ao divino: o “Amor é a lei, amor sob vontade”. E nesse axioma simples encontramos a chave para dançar com plenitude no fio sutil que une o terreno ao eterno, o objeto à verdade.
Amor é a lei, amor sob vontade.
Velasco, Marina. “Hume, as paixões e a motivação.” ↩︎
Siqueira, Jean Rodrigues. “Ser é ser percebido-um exame de duas interpretações da justificação do esse est percipi na filosofia de George Berkeley.” (2005 e.v.). ↩︎
Aurélio, Marco. 365 Reflexões estoicas. On Line Editora, 2022 e.v. ↩︎
Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Edipro, 2019 e.v. ↩︎
Jung, Carl G. e Léon Bonaventure. Obras completas de CG Jung. Vozes, 1982 e.v. ↩︎
Velasco, op. cit. ↩︎
Bateman, Bradley W. “GE Moore and JM Keynes: a missing chapter in the history of the expected utility model.” The American Economic Review 78.5 (1988 e.v.). ↩︎
Crowley, Aleister. Liber AL vel Legis. Penumbra Livros, 2020 e.v. ↩︎
Crowley, op. cit. ↩︎
Na tradição filosófica grega, Eros, Philia e Ágape podem ser entendidos como três manifestações do amor em diferentes níveis, formando uma ascensão nos níveis da consciência amorosa. Eros representa o amor passional e iniciador – a chama do desejo que impulsiona a alma no primeiro passo da dança entre o eu e o outro, embora ainda ligada ao plano físico e sensual. Philia manifesta-se como amor fraterno e construtivo, nutrindo vínculos de amizade sincera, respeito e confiança mútuos – um amor mais estável e duradouro que busca o bem do outro e edifica relações verdadeiras. Ágape, por sua vez, resplandece como o amor universal, incondicional e transcendental – um amor devocional e desinteressado que se estende a todos os seres e nos aproxima do divino.Nessa jornada ascendente, o amor se purifica e se expande: do fervor de Eros à comunhão de Philia, culminando na graça de Ágape. Cada estágio eleva a consciência amorosa e a aproxima da Verdadeira Vontade (realização espiritual do ser), cumprindo assim o ideal thelêmico de que “Amor é a lei, amor sob vontade” – isto é, no ápice do amor, a paixão humana funde-se com a vontade divina, revelando a unidade sagrada entre o amar e o querer. ↩︎
Huxley, Aldous, & Huston Smith. The divine within: Selected writings on enlightenment. Harper Collins, 2013 e.v. ↩︎
Foto de Caleb Ekeroth na Unsplash.