A Evolução do Processo de Escrita no Diário ¶
“Por que você se preocupa sem motivo?
Quem você machucou sem motivo?
Quem poderá te matar? A atma não nasce por isso não morre.
O que quer que tenha acontecido, aconteceu para o bem.
O que quer que esteja acontecendo, está acontecendo para o bem.
O que quer que venha a acontecer, acontecerá para o bem.
Não tenha arrependimentos pelo passado
Não se preocupe com o futuro
O presente está acontecendo …Quais sãos as perdas pela qual você chora ?
O que você trouxe contigo que acha que perdeu ?
O que você fez que acha que foi destruído ?
Você não trouxe nada
Tudo que você tem veio daqui
Tudo que você tem oferecido
Você tem oferecido apenas aqui
Tudo que você tem , você tem de Deus
Tudo que você tem dado , você tem dado a EleVocê veio de mão vazias e você partirá de mãos vazias
O que é o seu hoje pertenceu ao ontem de alguém
e dia depois de amanhã pertencerá a um outro alguém.Você erra pensando que isso é apenas seu
E essa falsa felicidade é a causa das suas tristezas
Mudança é a lei do universo” (g.n)— Bhagavad Gita
Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.
O objetivo aqui é auxiliar o Probacionista no processo de escrita de seu diário. Li muito a respeito, artigos excelentes, mas infelizmente nenhum deles trazia a fórmula milagrosa que buscava, a qual me conduziria enfim a uma escrita eficiente.
Já adianto que a falha não estava no material estudado, mas antes deles — ou além deles. O problema estava em mim.
Reconhecido isto, trago a capciosa pergunta, que responderei ao final: Por que tudo o que tinha lido a respeito, por mais que tenha auxiliado em maior ou menor escala, não trouxe a esperada solução definitiva?
Para chegar a conclusão, fui obrigado percorrer um inquietante caminho e a exposição dos meus “grandes erros” de percurso, podem auxiliar muitos, já que penso que minhas principais falhas podem ser as mesmas de outros que buscam o aprendizado de escrita e manutenção do diário. Então, vamos lá!!!
Começando do início… ¶
Quando iniciei o caminho de Probacionista na A∴A∴, meu instrutor indicou que fizesse meus registros em um site que já funcionava há muito tempo e suportava o diário de inúmeros irmãos ao redor do mundo.
O site tinha boas ferramentas para apoiar as diversas técnicas que podem ser praticadas pelos membros da Santa Ordem e meus registros eram feitos diretamente nele.
Passei 12 meses fazendo entradas neste site. Apenas fazia os registros, sem falha e equivocadamente achava que o grande objetivo do diário era a disciplina. Sem dúvida, a disciplina é um aprendizado importantíssimo, mas não o principal.
Por vezes me frustrei ao parecer que fazia registros praticamente idênticos na minha prática por dias e dias, talvez por uma semana inteira o registro de prática parecia ser uma cópia de segunda a sexta, mesmo não sendo. Pensava: “Será que meu instrutor espera que eu tenha visões ou consiga alguma façanha mágica”? Se fosse isso, eu estaria perdido, pois não estava acontecendo.
Apesar da sensação de estagnação, mantinha em ordem os registros diários e nunca voltava a ler nada do que já havia registrado.
Certo dia, entrei pra fazer o registro e o site não estava no ar. Bateu o medo. Meu instrutor disse que isso acontecia e depois voltava, mas dessa vez foi diferente. Foram 12 meses de registros perdidos definitivamente.
Este foi meu primeiro grande erro: não mantive meus registros em local seguro e recuperável.
Começar de novo. ¶
Tentei fazer um “resumo” de cabeça do que tinha feito, mas obviamente não deu certo, fui obrigado a me conformar que o trabalho de um ano foi todo por água abaixo. Como lembrar de registros do que ocorrera diariamente por 365 dias? Impossível!
Junto a isso, por motivos que não vem ao caso, passei a ser orientado por outro instrutor e comecei novamente, do zero.
Desta vez, senti necessidade de fazer os registros manuscritos, anotava em um papel para digitar em um segundo momento. Era trabalhoso e os registros eram misturados, na ordem natural dos acontecimentos. Assim, tinha dia que o Asana estava na parte da manhã e as vezes a prática de Asana estava no final.
A seguir, um registro nesse formato da época:
“Dia xx/xx/xxxx — “Acordei as 05h20 e bebi uns 350 ml de água. Fui ao banheiro e iniciei meu asana (O Deus) as 05h25. Durante o asana, senti algumas coceiras mas me mantive sem movimento. Em um dado momento, perdi a sensação do corpo do pescoço para baixo e a percepção de tempo, como se eu estivesse em um sono leve. Saí do asana as 06h05 (40min de duração) e a sensação foi um forte formigamento no corpo e no topo da cabeça e o fim do enrijecimento como se eu estivesse retornando ao corpo. (…)”. Neste registro, inicio novamente a prática e seu registro. Ainda estão carentes de mais detalhes como temperatura ambiente, sensação térmica ou roupas, dados astrológicos. No restante do registro, apenas a rotina de forma mais superficial.”
Até aqui, sem problemas. Eu anotava tudo detalhadamente, incluindo coisas como o que havia tomado de café da manhã. Como minha letra é difícil de entender, fazia uma atenta leitura e na hora de passar ao computador, digitava apenas as partes que julgava serem importantes pra enviar quinzenalmente à ele.
Este foi meu segundo grande erro: Eu selecionava as partes (que estão entre as aspas no exemplo acima) que considerava serem as mais relevantes, porém, nesse estágio é impossível medirmos isso! Os registros devem ser transmitidos ao instrutor na íntegra, mesmo que você mantenha uma cópia do registro original, como eu fazia.
Eu escrevia, enviava e meu instrutor me provocava com algumas questões sobre os registros: “Nesse dia que você disse ter ficado com raiva, observou se tem frequência? Analisou se foi esse o motivo ou se você ficou com raiva por outra coisa?”, o que me fazia retornar e ler o registro para obter as respostas e aí é que a coisa começou a funcionar!
Este foi meu terceiro grande erro: registrava e guardava, quando deveria depois de algum tempo analisar os registros para ter uma leitura de mim mesmo.
O diário é uma memória. Se tivermos a memória de algo e nunca mais a resgatarmos, de que adiantou tê-la? Se o ditado “recordar é viver” tem fundamento (e a grande maioria dos ditados têm), posso, parafraseando, afirmar que “reler o diário é crescer”.
Funciona! ¶
Ficamos combinados que meus envios de diário ocorreriam quinzenalmente (dois envios por mês). Após os progressos que vivenciei com as provocações que me incitaram a releituras, passei, por conta própria a fazer análises dos registros, uma por dia e uma no final da quinzena, no aspecto geral. E aqui, o grande “pulo do gato” e onde meu diário começou a realmente deslanchar.
A sacada é que eu não fazia a análise no dia ou no dia seguinte. As análises, tanto dos dias como a da quinzena eu só fazia depois de fechada a quinzena, antes de enviar ao meu instrutor! E nesse ponto as análises foram brilhando aos meus olhos! É preciso deixar “a poeira baixar” para enxergar o que estava bem debaixo do meu nariz! Entendi que escrever no diário é como fabricar cerveja ou vinho: o sabor vai mudando com o passar do tempo, é preciso maturação para se chegar ao resultado final pretendido.
Além disso, o mesmo registro que lemos hoje, será entendido de forma diferente se lermos daqui a um mês e novamente diferente daqui um ano porque nós estamos em constante evolução, nós estamos em movimento e o passado, embora esteja ali, escrito e estático, causará sempre uma nova impressão toda vez que visitado.
Então, é natural que nossa leitura da situação descrita mude, identifique coisas que no momento passaram desapercebidas e isso também pode e deve ser registrado. Essa é a beleza e dinâmica do diário e creio eu que seu maior propósito.
Percebi a importância do diário como uma ferramenta fundamental de evolução, a ponto de não conseguir entender como pude chegar a esta idade sem ter tido um. Hoje, mesmo que meu instrutor me abandonasse, mesmo que eu decidisse ou precisasse sair da Santa Ordem, ainda que ocorresse em minha vida algo que lhe invertessem completamente os rumos, ainda assim, eu jamais abandonaria a prática do diário, porque agora reconheço o poderoso instrumento que tenho a meu favor. Deixou de ser uma exigência ou imposição para ser uma das mais poderosas “armas” do meu desenvolvimento.
Embora com evidente progresso, sentia que o formato ainda não era o ideal e necessitava de ajustes, a leitura dos registros anteriores era dificultosa e um pouco confusa, pois como já relatei, escrevia em ordem de acontecimento durante o dia, o que deixava a pratica no meio do registro e as vezes o sonho também (um sonho no domingo a tarde, por exemplo); havia dificuldade em achar o que eu queria.
Então, alterei a estrutura do meu diário de forma a ter seções fixas onde as práticas de asana ou pranayama estão sempre no mesmo lugar. Os sonhos estão sempre no mesmo ponto e a rotina também. Não foi preciso meu instrutor pedir, até porque ele jamais faria isso, apenas adequei a uma necessidade que surgiu naturalmente.
Então a organização no novo formato ficou como abaixo:
Dia xx/xx/xxxx-V:v, sol em peixes (26°), Lua minguante em sagitário (26°), dia lua.
ASANA: Hora lua. Inicio as 06h35 até 06h55. Posição estável, mente tranquila, respiração pausada e confortável. Temperatura levemente fria. Prática ouvindo Líber Cordi (capítulo escolhido). Em um momento veio à mente a imagem de uma mulher ruiva de cabelos cacheados na altura do pescoço, com vestido escuro estampado, dançando (como um ritmo caribenho, mas não era). Não vi o rosto. Acredito que possa ser influência do áudio do Líber Cordi. Eu ouvia o capítulo III versos 1 a 10.
SONHO: Sem sonho registrado.
ROTINA: Acordei as 06h20 e fui ao banheiro. Ótima noite de sono. Meu chefe convocou uma reunião. Fui e o ‘Sr. A.’ passou para eu cuidar de um trabalho específico e eu deixei claro que preciso de aumento. Houve um leve estresse entre a gente, pois ele quis impor e eu não deixei. Ora, sou o menor salário da empresa para cuidar da maior região e várias áreas? Me parece a história do “bode comunista”. Só vão colocando trabalho, aumentando responsabilidade, etc. Não me senti a vontade e coloquei minha posição. Na volta ao fim do dia, o ‘A’ me ligou e contou que está se separando da esposa. Conversamos um tempo. Hoje estourou uma rebelião em uma carceragem que fica a 1 km de casa e alguns presos fugiram.
ANÁLISE: A respeito da imagem vista durante o Asana, acredito que tenha sido influência do Liber Cordi e uma forma de imagem subconsciente de Babalon (por isso a mulher teria cabelos ruivos). De qualquer forma, estar dançando, passou uma sensação de leveza e alegria. Em relação ao trabalho, tenho deixado meus desconfortos nítidos e tento expô-los logo no início. A respeito da rebelião, foi confortável e tranquilizante a sensação de proteção e força individual o fato de ter proteção em casa (…). É muito bom não depender do “sistema”.
Na primeira versão do diário, inseri dados “indicadores” de tempo de prática, páginas produzidas, dias relatados, enfim, enchi de coisas que inicialmente, achei que pudessem servir a mim ou ao meu instrutor.
Conforme progredi, tirei as bobagens de “rotina” (incluindo as coisas que eu comia), salvo se tivesse sentido alguma reação digna de nota e tive a sensação de ir rumo ao caminho certo.
Veja como é maravilhosa essa ferramenta! Você pode ajustá-la, acrescentando ou removendo qualquer coisa que vise sua melhoria ou conforto (ou até mesmo fazer testes para ver se haverá diferença na qualidade dos registros) durante o percurso.
O diário é meu e só quando me apropriei de fato dele com CONSCIÊNCIA de que é uma ferramenta que tenho pra uso no meu desenvolvimento é que esta necessidade surgiu. No começo, escrever no diário era uma imposição do nosso sistema. Hoje, meu instrutor teria sérias dificuldades em me fazer abandonar o diário, o que não me vejo fazendo, por motivo algum, como já dito.
Este foi meu quarto grande erro: escrever inicialmente o diário como uma obrigação (e com formalidade) e não como algo que eu possa e queira buscar no futuro para me autoanalisar, explorar, descobrir e usar para redirecionar ou confirmar coisas que preciso na vida.
Quem não comunica… ¶
Além da consciência de posse e propriedade do diário, devemos ter também a percepção de que seu preenchimento é feito utilizando interação com o todo! Isso quer dizer que devemos transcrever nossos pensamentos e percepções da forma mais fiel possível, sendo o espelho do que pensamos, falamos, agimos ou sentimos. Dessa forma, tudo é permitido: gírias, palavrões, desenhos, etc.
Na linguagem formal, a expressão “fiquei muito bravo” não consegue alcançar a extensão e intensidade da expressão “fiquei puto da vida”. Então, nada de querer maquiar o que será transcrito, por imaginar que diário deve ser algo “imaculado”. Não pense dessa forma! O sagrado existente no diário é justamente a honestidade, sinceridade e transparência na comunicação da realidade vivida.
Pensando que você venha a dar uma topada com o dedo mínimo do pé na quina da cama, vai escrever que “sentiu grande dor”? que sentiu uma “dor extrema”? Mas o que é grande ou extremo em termos de dor na sua vida naquele momento, no dia seguinte pode não ser mais!
No meu caso, a dor descrita acima seria descrita como extrema até o dia que tive uma pedra nos rins, depois desse fato, a “dor extrema” ganhou novo significado. Quem nunca achou que morreria e nunca mais seria feliz, após o primeiro amor não correspondido? E depois desse, provavelmente vieram tantos outros que este nem é mais lembrado.
Um registro que exemplifica isso:
(…) Fizemos algumas vídeo-chamadas com o ‘F’, o ‘M’, o ‘P’ e o ‘N’. O pessoal, já bêbado, lançou fotos nossas no grupo e foi bem perceptível que gerou incomodo na maioria, por termos feito algo sem eles ou sermos amigos entre nós. As relações humanas são difíceis de entender e as pessoas problematizam tudo. Por isso é tão bom e libertador, fazer o que queremos e dar um “foda-se” para o resto (…)
Então, toda comunicação, seja a batida do dedo na quina da cama ou a dor do amor não correspondido, tem de ser feita da forma mais honesta e nítida possível, sem pudor ou filtro: “bati meu dedo do pé na quina da cama e puta que pariu, que dor infernal! Ardia até o meio da canela como se eu tivesse arrancado o dedo. Senti de súbito um tipo de raiva combinado com uma vontade imensa de quebrar a cama inteira com uma marreta e depois de 15 ou 30 segundos tudo voltou ao normal”; ou “eu não senti fome, sede ou vontade de levantar da cama e meu peito parecia materializar a dor física do desamparo, senti um constante nó na garganta, que me acompanhou até a hora de deitar”.
As situações descritas não seriam entendidas da mesma forma se tivessem sido escritas em uma ou duas palavras formais. O desabafo do palavrão ou o aparente exagero na transcrição do sofrimento, externaram com fidelidade a intensidade do que se precisava comunicar.
E assim é todos os dias, a rotina é repleta de situações que demandam muito mais sinceridade que o português polido: a humilhante repreensão do chefe em publico; o dolorido chute nas partes intimas; a sensação de vazio de um término de relacionamento ou a briga com o melhor amigo. O único limite é tornar seus escritos “entendíveis” por seu instrutor sem seu auxílio (o que pode ser um problema no uso de gírias regionais, por exemplo).
Estas ferramentas disponíveis e efetivas não devem ser desconsideradas, muito pelo contrário, devem estar presentes, na medida de sua necessidade, no objetivo de construir seu diário de forma eficaz. Uma pessoa que possui dificuldades em escrever mas que desenhe bem, pode por exemplo, narrar com muito mais perfeição um símbolo visto em sonho com seus traços, do que com palavras.
Então, tenha sempre em mente que o conteúdo é mais importante que a forma e deve refletir com fidelidade a realidade dos fatos e sensações.
E essa carência? ¶
Esse foi o quinto grande erro: tinha expectativa de que meu instrutor me desse algum feedback ou me indicasse a melhor maneira de escrever, falasse como ele gostaria que fosse. Que engano o meu! O diário é pessoal. O papel do instrutor é identificar o problema do Probacionista e agir, provocando-o a pensar, chegar a suas próprias conclusões, mas não irá sugerir ou interferir. Ele não irá te pegar pela mão e mostrar o caminho, não é seu propósito e ele também tem sua tarefa a executar. Tenha isso bem reforçado em sua mente, em vários momentos pode bater um vazio imenso pois você mandará seu diário, cheio de inseguranças sobre sua forma e conteúdo e não terá uma só palavra sequer de retorno a respeito.
A questão é: quem nos disse que deveríamos ter? De onde criamos essa expectativa sobre o nosso instrutor?
O diário, se analisado corretamente, pode responder essa e muitas outras questões parecidas em relação à expectativas que criamos e a frustração de não atende-las.
E nesses vazios que são gerados em nossa caminhada, pela ausência do feedback (que nem deveríamos esperar) do instrutor ou pelos atrasos ou falhas nos registros que as vezes a vida nos impõe, é que aparece um inimigo perigoso chamado dispersão, talvez o maior de todos os problemas!
Dia xx/xx/xxxx — V:vi, sol em touro (9°), Lua crescente em câncer (21°), dia mercúrio.
ASANA: Hora Mercúrio. Inicio as 06h40 e termino as 07h00. Temperatura e postura confortáveis. Leve arrepio no corpo, quase imperceptível durante a prática.
SONHO: Sem sonho registrado.
ROTINA: Acordei, bebi água e fiz os exercícios. Dia normal de trabalho. Liber Cordi decorado com sucesso até o verso 15 e decorando o 16. Enviei o diário da segunda quinzena para meu instrutor e amanhã devo terminar a primeira quinzena de Março. Impressionante como me atrasei e dispersei por bobeira e com tão pouco, é possível resolver as coisas. Tive esse insight falando com o Frater no whatsapp.
ANÁLISE: Percebo a minha dispersão dos objetivos e esta talvez seja uma característica a ser combatida em primeira linha. Com dispersão, mesmo que eu saiba onde quero chegar e como devo fazer pra chegar, não consiga cumprir o objetivo. Devo me atentar muito a isso.
O vilão silencioso! ¶
Se pudesse fazer apenas uma única pergunta a todo Probacionista, seria exatamente a mesma feita pelo meu instrutor, em nossos preciosos diálogos socráticos: “Se lembra do seu juramento de Probacionista? Você está empenhado em cumprir o que se determinou?”
É justamente aí que a dispersão ataca e é tão perigosa! Porque nos vemos inclinados a estudar centenas de assuntos e executar outras mil atividades, mas a única tarefa que nos foi dada e a qual juramos executar, vai, despercebidamente ficando pra trás.
O Probacionista pode querer estudar cabala, tarô, gematria, fazer banimentos, rituais, círculos e não há nada de errado nisso, mas não deve jamais esquecer o juramento feito: obter conhecimento científico da natureza e dos poderes de seu próprio ser.
Não estou dizendo para que cesse as práticas exteriores e sim que deve se olhar para fora, sem deixar de olhar para dentro, que é onde está sua natureza e poderes do seu ser.
O diário é a ferramenta que auxiliará você nesta descoberta e ao mesmo tempo registrará e firmará seu progresso e sucesso ao seu instrutor.
Mas lembre-se que a dispersão te rondará diariamente. Sempre acontecerá algo, sempre existirá uma prioridade, sempre faltará tempo. Muitas vezes ficará para o dia seguinte ou pra depois de dois dias. “Eu me lembro”, pensará você. Neste momento a dispersão terá vencido! Já aviso que não se lembrará dos detalhes importantes, que ficarão permanentemente perdidos!
Então, meu sexto grande erro foi sucumbir a dispersão e por várias vezes achar que eu poderia pular um dia ou dois e depois me lembrar com fidelidade para fazer os registros.
Ora, esse instrumento poderosíssimo não se chama DIÁRIO à toa, né?
Claro que em caso de uma viagem por exemplo, você poderá gravar suas percepções e registros importantes em voz no celular e transcrever depois, o importante é registrar, TODOS os dias! Lance mão dos recursos disponíveis para que tudo ocorra da melhor forma e não disperse!
Nós não seguimos uma cartilha escrita e isso traz uma perigosa (e deliciosa) liberdade de agir, afinal, o registro é importante, mas viver a vida real, o agora, é o que produzirá os registros. Então, não pense que a A∴A∴ é apenas um sistema de teorias e registros em diários, de asanas e outros exercícios, é, acima de tudo, um sistema de vivência, de prática, é executar diariamente no mundo real as coisas que planeja e que quer, fazer valer sua vontade.
Portanto, esteja atento as coisas que te provocam sensações e se isso é bom ou ruim; medite e analise suas reações; descubra aspectos de si mesmo que são invisíveis a olho nu e estão escondidos em suas camadas mais profundas, reflita se o que você quer é o que você faz, se o que você pensou executar, conseguiu e se não, os porquês. E sempre REGISTRE!!!
Ah, que sonho! ¶
Os sonhos merecem destaque na nossa vida e no nosso diário! Não apenas os objetivos que chamamos de “sonhos” (como ter a casa própria ou o carro de tal modelo) mas os sonhos que temos dormindo. Estes são por vezes uma comunicação sem filtro e de altíssimo nível do nosso subconsciente ou até mesmo da esfera espiritual como defendem alguns irmãos; são recheados de símbolos e simbologia, o que os torna de uma complexidade enorme. Algumas poucas cenas de um sonho podem se expandir em diversas páginas de registro. Por isso, tente não perder os sonhos, eles se dissipam com muita facilidade!
Seja um caderno ao lado da cama pra anotação rápida e breve no meio da noite ou uma nota de voz no celular, confiar que quando acordar pela manhã, ou na hora em que for anotar no diário, ao fim do dia se lembrará, é um grande um erro quando se trata de sonhos.
Claro, que a maioria ao ler este artigo pensará que dará conta em lembrar dos sonhos e perceberá do que estou falando, tão logo veja que este é um problema ao qual todos estão sujeitos. Os sonhos devem ser tratados com “carinho” especial, pois trazem recados que por muitas vezes não se repetirão. Logo, captou a mensagem, ótimo, não captou, perdeu e sabe-se lá quando (ou se) terá uma nova oportunidade.
Um registro interessante como exemplo, segue abaixo:
Dia xx/xx/xxxx — V:vi, sol em câncer (22°), Lua minguante em touro (8°), dia marte.
ASANA: Sem prática registrada.
SONHO: Tive um sonho estranho onde eu estava em um lugar que não tenho referência de algo parecido. Um tipo de fazenda, mas diferente. Ninguém conhecido, havia muitos jovens e especificamente duas meninas gêmeas com cabelo liso, loiro avermelhado e pele muito branca. Corpo escultural e carnudo (não eram do padrão magro). Em uma espécie de brincadeira as pessoas me falam algo que não entendo e colocam elas sobre uma carroça e uma espécie de prato de bolo nas mãos de cada uma. Viram a carroça pra traz e uma delas não deixa cair o bolo (a outra deixa e se suja). Essa que sai da carroça sem ter deixado cair o bolo vem em minha direção e todos incentivam a ficarmos. Gelei, pois eu não queria, mas a menina vem se esfregando e seduzindo e eu a beijo. Sem parar de beijar, vou empurrando até ela encostar em uma porteira, onde do lado de dentro havia uma espécie de salão rústico. Ela mostra o pescoço e vou beijando e mordiscando, quando ouço ela proferir uma ofensa (que não lembro). Eu paro e falo bravo: O que você está pensando, menina? Está louca? E ela continua seduzindo e me fala pra apalpar sua bunda (sob um vestidinho curto). Eu volto a beijar e mordiscar enquanto apalpo a volumosa bunda. Ela deita no degrau de entrada e vou avançando por cima dela, quando de repente ouço uma voz de mulher com um “te peguei, safado!”. Eu gelo e me levanto. A menina continua deitada, mas em uma posição de vergonha, como se tivesse feito parte da armação. Nisso, vejo (uma pessoa do passado). Da mesma forma que a conheci, uma mulher velha, de roupas evangélicas simples e cabelo comprido, com dedo enriste e avançando sobre mim, pregando moral e tecendo ofensas. Eu, sem pensar muito, desfiro um chute frontal no meio do peito da velha (que na vida real deveria tê-la matado, pela estrutura frágil dela) e ela praticamente voa pra cima de uma mesa e fica. Estou tomado de fúria. Nisso, vejo uma mulher gritando no fundo da sala e é a filha dela. Ensandecida, ela começa a arremessar dardos, paus e coisas na minha direção e eu desvio deles e alguns arremesso de volta com muita força, mas não vejo se pegou. (…)
ANÁLISE: Analisando o sonho, duas meninas (gêmeas ou seria o SIGNO de gêmeos?) ruivas de pele branca (existe um certo padrão que me ronda nesse aspecto). Seria uma imagem interior de Babalon que tenho montada arquetipicamente em meu subconsciente? Ou apenas um gosto sexual desconhecido? Novamente o “ficar” vem como o instinto animalesco do sexo, necessário, como comer ou respirar. Porém, no sonho eu “fiquei gelado” por não querer trair mas sucumbi ao tesão do momento. Ora, que “querer fraco” é esse? Ou seria que o querer de verdade é o de ir pra cima do momento e o suposto “gelo” é causado por padrões sociais e morais impostos ao longo da vida? Quando ela desfere a ofensa, eu poderia apenas ter ficado quieto me ocupando do deleite da situação mas mesmo sob risco de perder tudo que poderia ter a frente, me ergo em oposição. Ela novamente seduz e eu mudo de sentido. Novamente vem a dualidade: Elevo o tom porque quero me impor ou elevo o tom porque a ofensa vai de encontro ao que a “moralidade” diz que tenho que defender? Ainda preciso analisar muito essa situação. Seria talvez essa mulher um símbolo daquilo que desvia a vontade se usando das ações e reações mais baixas, mais animalescas do meu ser? Seria esse o link com o “cabelo ruivo e pele branca”, em um contraste do vermelho do cabelo (fogo, sedução, paixão) com a pele branca (inocência, paz, pureza)? O disfarce ideal. O sentido da “armação” traz a indicação que ceder ao sentimento instintivo da sedução foi de fato uma forma de me levar onde OUTRA VONTADE queria e respondo a primeira questão: o incomodo da traição não foi um incomodo por padrões morais e sim porque não é possível trair outra pessoa! Eu ME trai pois se tenho a vontade e o compromisso por mim estabelecidos de ficar só com ela (e nada me obrigou a isso), então eu não a trairia mas antes, trairia aos meus próprios propósitos. Ao ver a (pessoas do passado) no sonho, em situação de confronto, isso expõe a mágoa e rancor que guardo internamente de ambas. Conheço e sei que este sentimento está aqui e é justamente contra esse “demônio” eu luto no sonho. A questão é que não tenho que lutar contra e sim tê-lo ao meu favor e orientá-lo ao meu propósito. Preciso evoluir isso nesse sentido. O restante não consegui estabelecer vínculos.
Por vezes, podemos ser concisos em diversas anotações do nosso diário (como os pormenores de um jantar de amigos ou uma reunião de trabalho) mas evite ao máximo o ser com os registros de seus sonhos. Como sempre brinco com meu instrutor, “o diabo mora nos detalhes”. Tente colocar tudo que conseguir do sonho: roupas, cores, sensações, cheiros, objetos, como tudo estava disposto, organizado, o que isso te trazia (saudosismo, alegria, incomodo).
A sala com uma caveira sentada no canto, embaixo de uma parede vermelha, pode significar um pedaço do seu subconsciente (sala) que está reclamando que o amor (vermelho) que você julga sentir, já morreu (caveira) mas você mesmo sabendo de certa forma, não quer aceitar; ou aquele sonho com o garoto mais velho e forte que te batia quando criança, pode estar apenas querendo dizer que você ainda não mostrou pra si mesmo a força que tem.
Nós somos portadores de diversos “demônios” do passado que vagam em nosso inconsciente e eles vão se mostrando de tempos em tempos, nos sonhos, maquiados por personagens e situações. E não pense nos demônios, de rabo e chifre, identificados pelo conceito ocidental cristão mas sim no “aspecto” ou “parte de si”. Se eles fazem parte da sua natureza, como inquilinos que são, deverão entender como é a regra da casa (seu ser) e agir de tal forma que se mantenha a harmonia nessa morada.
Mas se eu sonhar acordado? ¶
É possível que ocorra! Vai ter dia que você irá iniciar sua prática de asana e de repente, pegará no sono. Quem nunca?
Mas pode ser que justamente desse estado de sonolência (estabelecida ou pré), surja um sonho ou até mesmo visão, com imagens realistas ou experiências sensoriais muito reais, como estar em pé, mesmo estando sentado, ou sentir alguém te tocar, estando sozinho, a mente cria e o corpo responde.
Estas experiências extraordinárias nos mostram como nossos dispositivos sensoriais são falhos. Assumimos por educação adquirida que tudo que ouvimos, são sons e tudo que vemos, são imagens, das experiências práticas com asana, pranayama, ioga e tantas outras, passamos a entender que nem tudo que ouvimos, de fato existiu no som físico, nem tudo que vimos, está lá, nem tudo que sentimos, de fato estimulou nosso tato fisicamente. Então, o que é real? O que foi real até aqui?
Uma das experiências que tive neste sentido foi a que segue:
Dia xx/xx/xxxx — V:v, sol em aquário (19°), Lua crescente em leão (6°), dia saturno.
ASANA: Hora saturno. Início as 06h40 e término as 07h05. Temperatura confortável, dia bonito, posição estável e respiração ritmada. Sensação boa trazida pelo cheiro do incenso e a música ao fundo. Me trouxe lembranças dos dias que passei em Bangkok. O corpo adquiriu uma sensação de leveza como se estivesse querendo flutuar, mas sem flutuar. Como se estivesse uns 90% mais leve. Me veio uma visão na mente que parecia sonho (mas não estava dormindo) como se eu estivesse na frente de um muro amarelo e várias pessoas jovens, mulheres e homens, vestidos com roupas árabes, estivessem indo apressadamente e feliz por um portão principal que ficava no meio desse muro. Algo me impeliu a ir também. Chegando em frente ao portão de madeira, grande e imponente, vi um jovem moreno, alto, vestido com roupas árabes e com turbante, como se estivesse começando a fechar o portão. Ao vê-lo, parei. Ele me abriu um largo sorriso e estendeu a mão indicando que eu entrasse. Adentrei o portão e não consegui ver mais nada além e a cena se desfez. Fiquei com uma sensação leve de balanço como se eu estivesse sobre uma gelatina, balançando vagarosamente. Boca seca, arrepio bem leve ao fim. (…)
Registre com riqueza de detalhes estas ocorrências. São capacidades suas que estão sendo descobertas e evoluindo e depois de tantos anos de vida, com elas dormentes, tenho certeza que não irá querer perder estes registros, para uma análise futura.
Pra toda pergunta, uma resposta.
Ou várias. ¶
Encontre em você, a partir do registro e análise, os pedaços que cada pessoa que conviveu ao longo de sua jornada nessa vida, deixou.
Em cada um de nós, habita uma parte de nossos pais, avós, irmãos, esposa, amigos, antigos relacionamentos, etc.
Estas partes que cada um nos deixou se combinam e dominam alternadamente, momentos de nossa suposta consciência, sem que tenhamos discernimento correto se somos nós mesmos ou estes inúmeros “aplicativos” instalados ao longo da vida.
Voltando a pergunta do início: Por que tudo o que eu tinha lido a respeito de escrita no diário, por mais que possa ter auxiliado em maior ou menor grau, não me trouxe uma solução definitiva?
Porque cada diário é único, como aquele que o escreve, é uma ferramenta mágica fabricada dia a dia por seu utilizador e se tem uma palavra que não combina com ele é “definitivo”.
Sua forma, sua cor, sua estrutura, sua utilização, enfim, tudo que possa vir dele, deverá ser moldado e construído pelo seu dono, é uma ferramenta altamente adaptável para ser sob medida e eficaz.
Então, entenda que o mais importante é a sua sinceridade em colocar nele seus sentimentos, percepções e análises. Nele não deverá se preocupar com o politicamente correto, com o pensamento que não deveria ter tido ou com o que poderão achar do ato que não deveria ter praticado, tudo que foi, foi por um motivo e lhe cabe registrar e analisar para que possa cumprir seu juramento.
Com a identificação dos seis “grandes erros” que cometi nessa trajetória, consegui perceber que o diário sou eu conversando comigo mesmo e quão difícil é ser sincero consigo mesmo, quando olhamos nossa própria vida!
Julgamos ser “certo” isso e “errado” aquilo até que perdemos a noção do certo ou do errado, pois até estas noções podem ser meros “aplicativos” educacionais ou sociais que “engolimos” sem questionamento. Crenças limitantes.
É você contando como está vendo as cores, como está sentindo os sabores ou quais sentimentos realmente existem por trás de um sorriso ou lágrima. Uma chance única pra deixar registrado ao mundo a sua visão de si próprio e do que vive. Sua autobiografia escrita pelo único que conhece você tão bem: você mesmo.
E essa autobiografia, em constante construção e evolução, evidencia como desconhecemos a nós mesmos, somos nosso maior desconhecido, um desconhecido íntimo.
E o que restará quando tiver reconhecido todos esses “aplicativos” que foram incorporados, mas que não fazem realmente parte de você? Ficará a sua essência, quem você é de verdade, ao vir para esse mundo e é essa natureza e poderes de sua essência que está sendo buscada através do diário nesta etapa da jornada.
Por fim, espero que compartilhando minha experiência, auxilie outros Probacionistas a transpor estes obstáculos na busca constante da melhor versão de seus próprios diários.
Amor é a lei, amor sob vontade.