Introdução ¶
A existência humana é cheia de sofrimento. Para mencionarmos um só fator secundário: todo homem é um condenado à morte; ele apenas ignora a data da execução. Isto é desagradável para qualquer um. Portanto, cada qual faz o possível para adiar a data, e sacrificaria tudo o que tem se pudesse anular a sentença.
Quase todas as religiões e filosofias angariaram seu sucesso inicial prometendo a seus aderentes a imortalidade como recompensa.
Nenhuma religião até hoje fracassou por não prometer o bastante; a presente derrocada de todas as religiões deve-se ao fato de que os devotos pediram para ver as garantias. Os seres humanos têm renunciado mesmo às grandes vantagens que uma religião bem organizada confere a um Estado do pondo de vista mundano, a fim de não cooperarem com uma fraude ou uma falsidade; e até para não cooperarem com qualquer sistema que, embora não provado culpado de mentira, tenha sido incapaz de provar sua inocência.
Já que estamos mais ou menos em bancarrota, será melhor atacar o problema de novo, desde o princípio, sem ideias preconcebidas. Comecemos duvidando cada afirmação. Descubramos um jeito de submeter todas as afirmações ao teste da experiência. Existirá qualquer verdade em todos os protestos das diversas religiões? Examinemos a questão.
Nossa primeira dificuldade está na enorme riqueza de material para exame. Fazer uma crítica de todos os sistemas seria uma tarefa interminável: a nuvem de testemunhos é por demasiado grande. Mas, toda religião é igualmente positiva em suas asserções, e toda religião exige fé. Esta nós recusamos por falta de provas científicas. Porém, podemos com proveito indagar se existe algum ponto sobre o qual todas as religiões têm concordado: pois se existir algo em comum entre elas, é possível que este ponto em comum mereça uma séria investigação.
Está claro que não encontramos isso nos dogmas das religiões. Mesmo a ideia – tão simples – de um Ente eterno e supremo é negada por um terço da raça humana8. Lendas de milagres são, talvez, universais; mas estas, na falta de provas convincentes, são repugnantes ao bom senso.
Mas e quanto à origem das religiões? Como é que afirmativas não provadas tão frequentemente compeliram a aceitação por parte de todas as classes humanas? Não é isso, por si só, um milagre?
Existe uma forma de milagre que com certeza acontece: a influência do gênio. Não existe nenhuma analogia com este fenômeno da natureza. Não podemos sequer receber um “supercão” transformando o mundo dos cães, enquanto na história da humanidade isso acontece com regularidade e frequência. Tomemos, então, três “super-homens”, todos os três brigando entre si. O que há de comum entre Cristo, Buda e Maomé? Existe algum ponto sobre o qual todos os três estejam de acordo?
Nenhum ponto de doutrina em comum, nenhum conceito de ética em comum, nenhuma teoria do “além” em comum; no entanto, na história de suas vidas, percebemos um acordo entre muitos desacordos.
Que acordo será esse?
Buda nasceu príncipe e morreu mendigo.
Maomé nasceu mendigo e morreu príncipe.
Cristo permaneceu desconhecido até muitos anos depois de sua morte.
Biografias inúmeras têm sido escritas por seus devotos, no entanto, e existe um ponto de acordo na vida dos três: uma lacuna. Não sabemos nada sobre Cristo entre doze e trinta anos de idade.
Igualmente, antes de ser profeta, Maomé desapareceu numa caverna. Buda deixou seu palácio e passou longos anos no deserto.
Cada um dos três, completamente desconhecido até desaparecer, voltou e imediatamente começou a pregar uma nova lei.
Isso é tão curioso que nos leva a perguntar se as biografias de outros grandes instrutores contradizem ou confirmam esta coincidência.
Moisés levou uma vida pacata até matar um egípcio. Então fugiu para terra de Midian, e não sabemos nada sobre o que ele fez ali. No entanto, mal voltou ao Egito e virou tudo de pernas para o ar. Mais tarde, também, ausentou-se no Monte Sinai por alguns dias, e voltou com as Tábuas da Lei na mão.
São Paulo após sua aventura na estrada de Damasco foi para o deserto da Arábia, onde permaneceu muitos anos; e ao regressar, derrubou o Império Romano. Mesmo nas lendas de selvagens encontramos o mesmo ponto de acordo: alguém sem a mínima importância vai embora durante um prazo curto ou longo, e volta como “o grande curandeiro”; mas não se sabe exatamente o que aconteceu com ele.
Descontando todos os outros detalhes como fábulas ou mitos, conservamos essa coincidência única: Um ninguém se ausenta e volta um alguém. Isso não pode ser explicado de nenhuma maneira usual.
Não existe qualquer base para se crer que esses homens tenham sido, desde o princípio de suas vidas, criaturas excepcionais. Maomé dificilmente teria permanecido um condutor de camelos até os trinta e cinco anos de idade se tivesse possuído qualquer talento ou ambição. São Paulo tinha, originalmente, muito talento: mas ele é o menos importante dos cinco. Nem parece que eles tenham possuído qualquer das alavancas usuais do poder, tais como posição social, fortuna, ou influência política.
Moisés era um homem relativamente importante no Egito ao sair de lá; mas regressou um simples estrangeiro.
Cristo não foi à China casar com a filha do Imperador durante seus anos de silêncio. Maomé não estivera angariando pessoas nem treinando soldados.
Buda não consolidou nenhuma organização religiosa.
São Paulo não tinha estado conspirando com algum general ambicioso.
Cada um deles voltou pobre; cada um deles voltou só.
Qual era a natureza do seu poder? Que aconteceu com eles durante sua ausência?
A história não nos auxiliará a resolver o problema, pois a história nada diz.
Temos apenas coisas contadas por estes homens mesmos.
Seria espantoso se a gente verificasse que essas coisas concordam entre si.
Dos grandes instrutores que mencionamos, Cristo se cala; os outros quatro nos contam algo, uns mais, outros menos.
Buda entra em demasiados detalhes para serem comentados aqui; mas em resumo, de uma forma ou de outra, ele se apoderou da força secreta do mundo, e amestrou-a.
Das experiências de São Paulo temos apenas uma alusão casual ao fato de que ele “foi arrebatado ao céu e ouviu coisas que é proibido dizer”.
Maomé fala simplesmente de uma “visita do Anjo Gabriel”, que lhe comunicou coisas de “Deus”.
Moisés diz que ele “viu Deus”.
Diferentes como pareçam à primeira vista estas afirmativas, todas coincidem em anunciar uma experiência de tipo que há cinquenta anos teria sido chamada de sobrenatural; que hoje em dia pode ser chamada de espiritual, e que daqui a cinquenta anos terá um nome científico, baseado numa compreensão do fenômeno ocorrido.
Os teólogos a têm explicado; mas de várias formas.
Os maometanos, por exemplo, insistem em que Deus existe, e em que realmente mandou Gabriel com recados para Maomé. Os outros todos contradizem isto, e chamam os maometanos de mentirosos. E por causa da natureza mesma do assunto, provar a verdade ou a mentira é impossível.
A falta de provas tem sido sentida tão fortemente pelo cristismo (e em grau menor pelo Islamismo) que novos milagres têm sido manufaturados quase que diariamente para apoiar a oscilante estrutura do dogma. O moderno pensamento materialista, rejeitando esses milagres, adotou teorias que sugerem epilepsia e loucura. Como se a organização pudesse provir da desordem! Mesmo se a epilepsia fosse a causa dos grandes movimentos que têm extraído do barbarismo uma civilização após a outra, isto seria um argumento em favor do cultivo da epilepsia.
Claro, grandes homens nunca se conformarão com os padrões de homens baixos, e aqueles cuja missão é reformar o mundo nunca poderão escapar ao título de revolucionários. As moedas de cada época sempre fornecem os termos de abuso. O condicionamento de Caifás era o judaísmo ortodoxo, e os fariseus disseram-lhe que Cristo “blasfemara”. Pilatos era um romano leal ao Império; a ele, acusaram Cristo de “subversivo”. Mais tarde, quando os papas tinham o poder, bastava acusar um inimigo de “herege”. Avançando para os dias atuais em direção a uma oligarquia médica, nós tentamos provar que nossos oponentes são “insanos”, e (em um país puritano) atacar suas “morais”. Convém pois evitarmos a demagogia e retórica, e investigarmos com plena imparcialidade os fenômenos que ocorreram com esses grandes guias da humanidade.
Não é difícil compreendermos que estes homens, eles mesmos, não perceberam claramente o que ocorrera com eles. O único que explica seu sistema por completo é Buda, e Buda é o único que não é dogmático. Podemos também supor que os outros julgaram pouco aconselhável explicar o processo com demasiada clareza aos seus seguidores; São Paulo evidentemente foi desta opinião.
Nosso melhor campo de pesquisa seria, portanto, o sistema de Buda[1], mas este é tão complexo que nenhum resumo serviria. E no caso dos outros, se não temos os relatos dos Mestres mesmos, temos aqueles dos seus seguidores mais imediatos.
Os métodos aconselhados por toda essa gente mostram uma notável semelhança. Eles recomendam conduta virtuosa (definindo essa conduta de várias formas), solidão, calma, dieta moderada, e finalmente uma prática que alguns deles chamam de “oração” e outros chamam de “meditação”. (Note-se que as quatro práticas prévias são apenas para estabelecer condições favoráveis à última.)
Investigando o que eles tentam expressar pelos termos “oração” e “meditação”, a gente verifica que significam o mesmo. Pois, qual é o estado de oração ou meditação? É a restrição da mente e a um ato único, a um único estado ou pensamento. Se nos sentarmos quietamente, e investigarmos o conteúdo de nossas mentes, perceberemos que, mesmo nas ocasiões mais favoráveis, as características principais são a divagação e a distração. Quem tiver lidado com crianças, ou com mentes destreinadas em geral, saberá que a fixidez da atenção nunca está presente, mesmo onde existe grande inteligência e boa vontade.
Se, nossas mentes estando mais treinadas, decidimos controlar o pensamento divagante, verificamos que somos (mais ou menos!) capazes de manter os pensamentos em marcha, um atrás do outro, num canal estreito, cada pensamento ligado ao seguinte de uma forma perfeitamente lógica: mas se tentamos parar a marcha verificamos que, longe de sermos bem sucedidos, apenas demolimos as margens do canal. A mente se derrama, e em vez de uma cadeia de pensamentos temos um caos de imagens confusas.
A atividade mental é tão grande, e parece tão natural, que é difícil compreender como alguém teve pela primeira vez a ideia de que tanta atividade é apenas uma fraqueza e um distúrbio da consciência. Talvez tenha sido porque, na prática (mais comum) de devoção religiosa, as pessoas tenham percebido que seus pensamentos interferiam. Mas de qualquer forma, é claro que a calma e o autocontrole são preferíveis à inquietação. Charles Darwin trabalhando em seu escritório é uma criatura bem diversa de um macaco pulando em sua jaula.
Em geral, quanto maior, mais forte e mais elevado na escala evolutiva um animal seja, menos ele se move; e quando se move, seus movimentos são lentos e cheios de propósito. Compare a atividade incessante de bactérias com a firmeza ponderada de um castor. Também, exceto nas poucas comunidades animais organizadas, tais como a das abelhas, a inteligência maior é demonstrada por animais de hábitos solitários. Este fato, que é verdade nos animais menos evoluídos, é tão evidente no homem que os psicólogos são forçados a tratar do estado mental das multidões como sendo totalmente diverso em qualidade de qualquer estado mental possível a um indivíduo isolado.
É libertando a mente de influências externas, quer acidentais, quer emotivas, que a tornamos capaz de discernir algo da verdade das coisas.
Percebendo isto, a gente insiste em nossa prática. Decidimos que vamos nos tornar senhores de nossas próprias mentes. Bem depressa percebemos que condições são favoráveis a este fim.
Talvez a primeira percepção será a de que todas as influências externas serão, em sua esmagadora maioria, desfavoráveis ao processo de conquista do poder mental. Caras novas, cenas novas, nos inquietarão; mesmo os novos hábitos de conduta que adotamos como propósito de sossegar a mente tenderão, no princípio, a agitá-la. Também, deveremos renunciar ao hábito de comer demais, e seguir a regra natural de comer apenas quando temos fome, escutando a voz interior que nos diz que ingerimos o suficiente.
A mesma regra se aplica ao sono. Se decidirmos controlar nossa mente, a nossa hora de meditação deve ter precedência sobre qualquer outra atividade.
Teremos que fixar nossas horas de práticas, e tornar móveis nossas horas de lazer. A fim de medirmos nosso progresso – pois verificaremos que, como tudo o que tem a ver com os processos fisiológicos, a meditação não pode ser medida apenas pelas sensações – teremos um caderno de notas, um lápis e um relógio. Então nos esforçaremos por anotar com que frequência, durante (por exemplo) quinze minutos de prática, a mente se desvia da ideia na qual tínhamos resolvido concentrá-la. Praticaremos isto, digamos, duas vezes ao dia; e à medida que persistirmos, a experiência nos ensinará que condições são favoráveis à prática e quais não. Antes de termos feito isso por muito tempo, quase que infalivelmente a gente ficará impaciente; perceberemos que temos que fazer uma porção de outras coisas a fim de auxiliar nossa prática. Novos problemas aparecerão constantemente e terão que ser enfrentados e resolvidos.
Por exemplo: certamente descobriremos que nos mexemos sem parar durante a prática. Perceberemos que nenhuma posição do corpo é confortável, se bem que nunca antes notamos isto em toda a nossa vida!
Esta dificuldade tem sido resolvida por uma prática chamada Asana, que será descrita mais adiante. As memórias dos acontecimentos do dia nos incomodarão: devemos organizar nossos dias de forma a que nada de notável aconteça. Nossas mentes nos recordarão nossas esperanças, nossos medos, nossos amores, nossos ódios, nossas ambições, nossas invejas, e muitas outras emoções. Todas estas memórias têm que ser cortadas. Não devemos ter qualquer interesse na vida a não ser aquietar nossas mentes.
Esta é a finalidade dos votos monásticos usuais de pobreza, castidade e obediência. Se você não tem posses, não tem nada que lhe cause ansiedade; sendo casto, não tem outra pessoa para lhe preocupar e distrair sua atenção; e se está voltado à obediência, o problema de como proceder não lhe afeta, você apenas obedece.
Existem inúmeros outros obstáculos que você descobrirá à medida que prosseguir, e trataremos deles mais adiante. Mas, por enquanto, pularemos isso tudo para falar do momento em que você se aproxima do sucesso.
Nos seus esforços iniciais você poderá ter tido dificuldade em conquistar o sono, e ter se desviado do assunto de sua meditação a tal ponto que sem você notar a meditação poderá ter sido interrompida. Porém, muito mais tarde, quando estiver ficando mais perito, você ficará chocado ao perceber que se esqueceu por completo de si mesmo, do que estava fazendo, e até de onde estava! Você dirá: “Puxa, eu devo ter dormido!” ou então, “Sobre o que é que eu estava mesmo meditando?” ou “Que é que eu estava fazendo?” “Onde estou?”, “Quem sou eu?” Ou uma simples confusão e desnorteamento inexpressos podem atordoar você. Isto poderá lhe causar alarme, e seu alarme não diminuirá quando você retomar por completo à consciência normal e ponderar que acabou de esquecer quem era e o que estava fazendo!
Esta é apenas uma das muitas aventuras pelas quais você poderá passar; mas é das mais comuns. Quando ela ocorrer, suas horas de meditação estarão ocupando a maior parte do seu dia, e você provavelmente estará tendo constantes pressentimentos de que algo inusitado está para acontecer. Você poderá também estar amedrontado com a ideia de que seu cérebro está prestes a ceder sob a tensão; mas, a essa altura, você terá aprendido a reconhecer os verdadeiros sintomas de fadiga mental, e terá cuidado em evitá-los. Eles devem ser cuidadosamente distinguidos da preguiça!
Em certas ocasiões você sentirá como se houvesse uma luta entre a vontade e a mente; em outras, poderá sentir que elas estão em harmonia. Existe um terceiro estado, diferente dos dois primeiros, e sinal certeiro de que o sucesso está próximo: é quando a mente flui simplesmente em direção ao assunto escolhido, não como se estivesse obedecendo à vontade de seu dono, porém, como se sem ordem ou instigação, ou como se estivesse sob controle de algo impessoal: como se estivesse caindo por seu próprio peso, e não sendo puxado para baixo.
Quase sempre, no momento em que nos tornamos cônscios de que este estado está ocorrendo, a sensação cessa e o velho combate entre o vaqueiro vontade e o cavalo bravio mente recomeça.
Como em todos os outros processos fisiológicos, a consciência dela implica desordem ou doença.
Ao analisar a essência deste trabalho de controlar a mente, o estudante perceberá que duas coisas estão envolvidas: a pessoa que vê e a coisa que é vista; o conhecedor e a coisa conhecida; e acabará por considerar esta dupla como condição necessária de todo estado de consciência. Estamos demasiadamente acostumados a admitir como fatos demonstrados coisas sobre as quais não temos sequer o direito de dar palpites. Supomos, por exemplo, que os estados inconscientes são grosseiros e lerdos. No entanto nada é mais certo que, quando os órgãos de nossos corpos estão funcionando bem, eles funcionam em silêncio mental. Até o sono mais repousante é aquele sem sonhos. Mesmo no caso de jogos que necessitam de grande habilidade e destreza manual, as nossas melhores jogadas são seguidas pelo pensamento: “Não sei como pude fazer isto tão bem!”; e não podemos repetir essas melhores jogadas a qualquer hora. No momento em que começamos a pensar conscientemente sobre uma jogada, “ficamos nervosos”, e estamos perdidos.
Na realidade existem três tipos principais de jogadas: a má jogada, que associamos corretamente com a falta de concentração; a boa jogada, que associamos corretamente com a concentração intensa; e a jogada perfeita, a qual parece ser uma simples questão de sorte que não conseguimos compreender, mas na realidade resulta do hábito de fixidez da atenção se ter tornado inconsciente, independente da vontade, e assim capacitado a agir por conta própria.
Este é o mesmo fenômeno que mencionamos acima como sendo um bom sinal.
Por fim, algo acontece cuja natureza será discutida com mais detalhe adiante. Por enquanto diremos apenas que aquela consciência da dupla Ego e Não-Ego, vidente e coisa vista, conhecedor e a coisa conhecida, é aniquilada.
Em geral sente-se um enorme clarão, um som intenso, e uma felicidade tão grande que místico após místico têm esgotado todos os recursos da linguagem tentando descrevê-la.
É um nocaute absoluto da mente. É uma experiência tão vívida e tão tremenda que aqueles com quem ela ocorre ficam em grande perigo de perder o senso de proporção.
À luz desta experiência, todos os outros fenômenos da vida são como uma escuridão. Por isto, aqueles que a tiveram no passado fracassaram completamente em suas tentativas de analisá-la ou medí-la. A maior parte deles declarou, com exatidão, que, comparada com esta experiência, a vida humana normal é completamente sem valor. Mas eles foram adiante, e erraram. Argumentaram que, desde que esta experiência transcende o natural, ela deve ser sobrenatural, divina. Uma das tendências de suas mentes era a esperança de um “céu” tal como seus pais e professores lhes descreveram, ou tal como eles mesmos conceberam; e sem qualquer evidência científica para assim fazer, eles presumiram que “Isto é Aquilo”.
No Bhagavad Gita uma visão deste tipo é, naturalmente, atribuída à aparição de Vishnu, que era o deus local naquela época.
Anna Kingsford, que estudou um pouco do misticismo hebraico, e era uma feminista, teve uma visão quase idêntica; mas chamou a figura divina que ela viu, alternativamente, de “Adonai” e “Maria”.
Agora, essa mulher, apesar de prejudicada por um cérebro que era uma massa de polpa de podre, e por uma completa falta de status social, educação e caráter moral, não mais no mundo religioso do que qualquer outra pessoa que havia feito por gerações. Ela, e somente ela, fez a Teosofia possível, e sem a Teosofia o interesse mundial em assunto semelhante poderia nunca ter sido despertado. Este interesse é para a Lei de Thelema o que a pregação de João Batista foi para o cristianismo.
Podemos agora perceber o que aconteceu com Maomé. De uma forma ou de outra, este tipo de fenômeno ocorreu na mente dele. Menos bem informado do que Ana Kingsford, porém de maior caráter, ele relacionou o acontecimento com a lenda da “Anunciação”, que com certeza ouviu relatar quando menino, e disse: “Gabriel me apareceu.” Mas, a despeito de sua ignorância, de sua total falta de concepção da realidade dos fatos, o poder da experiência foi tal que ele persistiu através da perseguição usual, e fundou uma religião à qual, mesmo em nossos dias, um ser humano em cada oito pertence.
A história do cristismo mostra exatamente o mesmo fato significativo. Jesus Cristo crescera ouvindo as fábulas do “Velho Testamento”, e, assim condicionado, atribuiu suas experiências a “Jeová”, se bem que seu espírito gentil não podia ter tido nada em comum com o Egrégora que estava sempre comandando o estupro de virgens e o massacre de criancinhas, e cujos ritos eram então, e em algumas partes do mundo ainda são em nossos dias, celebrados com sacrifícios humanos[2].
Semelhantemente, as visões de Joana d’Arc eram inteiramente crististas; mas como todos os outros já mencionados, ela encontrou algures a força para realizar grandes coisas. Naturalmente, pode ser dito que existe uma falácia em nosso argumento: pode ser afirmado que toda essa nobre gente realmente “viu Deus”. Mas não se conclui disto que todo mundo que “veja Deus” venha também a causar grandes mudanças no mundo.
Isto é verdade. De fato, a maioria das pessoas que afirmam que “viram Deus”, e que sem dúvida “viram” tanto de “Deus” quanto estes já mencionados, nunca fez nada além de ter suas “visões”.
Porém, talvez seu silêncio seja um sinal não de sua fraqueza, mas de sua força. Talvez esses “grandes homens” de que falamos sejam na realidade os fracassos da experiência iniciática. Talvez fosse melhor não dizer nada; talvez apenas uma mente desequilibrada desejasse alterar o status quo, ou pudesse crer que alterá-lo é possível. Mas existem Aqueles que consideram, mesmo nos mundos celestes, a existência intolerável enquanto um só ser vivo não puder partilhar daquela alegria. Existem os que regressam do limiar mesmo da câmara nupcial para auxiliar aos convidados que se atrasaram.
Esta foi, pelo menos, a atitude adotada por Gautama Buda. Nem ficará ele sozinho[3].
Podemos também mencionar o fato de que a vida contemplativa está geralmente oposta à vida ativa, e um equilíbrio extremamente cuidadoso é necessário para evitar que uma absorva a outra.
Como veremos mais adiante, a “visão de Deus”, ou “União com Deus”, ou “Samadhi”, ou o que quer que concordemos em chamar essa experiência, tem muitos tipos e muitas gradações, embora exista um abismo intransponível entre a mínima dessas gradações e mesmo os mais elevados fenômenos da consciência normal. Resumindo, nós afirmamos a existência de uma fonte secreta de energia que explica os fenômenos do gênio. Não cremos em quaisquer explicações sobrenaturais, mas insistimos em que essa fonte pode ser alcançada se seguirmos regras definidas, pois o grau de sucesso depende da capacidade do praticante, e não da “graça” de qualquer “Ser Divino”. Afirmamos que o fenômeno culminante que determina sucesso é uma ocorrência no cérebro caracterizada pela união de sujeito e objeto. Propomo-nos a discutir este fenômeno, analisar sua natureza, determinar claramente as condições físicas, mentais e morais que lhe são favoráveis, descobrir suas causas, e assim produzi-lo em nós mesmos, para que possamos estudar adequadamente os seus efeitos.
Temos os documentos do Hinduísmo e os de dois sistemas chineses. Mas o Hinduísmo não teve um fundador único. Lao Zi é um dos nossos melhores exemplos de um homem que entrou em retiro e teve uma experiência misteriosa; talvez o melhor de todos os exemplos, assim como seu sistema é o melhor de todos. Temos detalhes completos de seu método de treinamento no Jin Gan Jing e alhures. Mas ele é tão pouco conhecido que omitiremos considerações a respeito dele neste relato destinado ao grande público. ↩︎
Os massacres de judeus na Europa Oriental, que surpreende o ignorante, são quase invariavelmente emotivos pelo desaparecimento de crianças “cristãs”, roubadas, como supõem os pais, para fins de “assassinato ritualístico”. ↩︎
Lidamos, neste esboço preliminar, apenas com exemplos do gênio religioso. Outros tipos de gênio estão sujeitos às mesmas condições, mas o pouco espaço à nossa disposição proíbe uma discussão mais extensa. ↩︎
Traduzido por Marcelo Ramos Motta (Frater Ever). Revisado por Frater ΑΥΜΓΝ.