Samadhi

Este artigo é um capítulo de Liber ABA – Magick – O Livro Quatro

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Capítulo VII
Samadhi

Já se escreveu demasiada bobagem a respeito de Samadhi; vamos nos esforçar por não aumentar o monturo. Até Patanjali, que é extraordinariamente claro e prático na maioria das vezes, começa a delirar quando fala de Samadhi. Mesmo se o que ele diz fosse verdade, ele não deveria dizer essas coisas, pois não parecem ser verdade; e não devemos fazer qualquer afirmativa que seja difícil de acreditar sem estarmos preparados para apresentar provas cientificamente documentadas. Mas é bem provável que Patanjali tenha sido mal interpretado por seus comentaristas.

A mais razoável asserção, de qualquer autoridade conhecida, é aquela de Yajna Valkya, que diz: “Através de Pranayama as impurezas do corpo são eliminadas; através de Dharana, as impurezas da mente; através de Pratyahara, as impurezas do apego; e Samadhi elimina tudo que esconde o senhorio da alma.” Esta é uma asserção modesta, e em bom estilo literário. Se pudermos fazer o mesmo!

Em primeiro lugar, qual é o significado da palavra? Etimologicamente, Sam é o grego συν-, o prefixo português sin-, significando “junto com”. Adhi significa “Senhor”, e uma tradução razoável da palavra inteira seria “União com Deus”, exatamente o termo utilizado por místicos crististas para descreverem sua consecução.

Existe muita confusão, porque os budistas usam a palavra Samadhi para significar uma coisa inteiramente diversa, a simples faculdade da atenção. (Assim, para os budistas, pensar em um gato é “fazer samadhi” sobre aquele gato.) Os budistas usam a palavra Jhana para descrever estados místicos. Isto é uma bagunça danada, porque, como vimos no último capítulo, Dhyana é considerado pelos hindus o estado preliminar a Samadhi, e Jhana é, claro, a corrupção pali da mesma palavra[1].

Existem muitos tipos de Samadhi[2]. Alguns autores consideram Atmadarshana, o Universo percebido como um fenômeno único e sem condições, como o primeiro verdadeiro Samadhi. Se aceitarmos isto, devemos relegar muitos outros êxtases místicos menos elevados à classe dos Dhyana. Patanjali enumera vários de tais êxtases: executar Samyama concentrando-se sobre vários objetos confere poderes mágicos, ou assim diz ele. Não é necessário aqui discutir essa questão. As pessoas que desejam poderes mágicos podem obtê-los em dúzias de maneiras diversas.

O poder cresce mais depressa que o desejo. O menino que deseja dinheiro para comprar soldadinhos de chumbo começa a cavar o dinheiro, e quando finalmente o consegue deseja alguma coisa muito diversa – provavelmente algo justamente além dos seus meios.

Esta é a esplêndida história de todo avanço espiritual: a gente nunca para a fim de colher a recompensa.

Portanto, não nos preocupemos se este ou aquele Samadhi pode trazer esta ou aquela vantagem transitória a nossas vidas. Nós abrimos este livro, se vocês se lembram, com considerações sobre a morte. A ideia da morte perde todo significado em Samadhi. Depende das ideias do ego e do tempo; e estas ideias são destruídas. “A morte é engolida em vitória”. Nós trataremos a seguir das condições que produzem Samadhi, e procuraremos analisar o que esta experiência é em si.

Dhyana se assemelha a Samadhi sob muitos aspectos. Em Dhyana há uma união do ego com o não-ego, e uma perda das noções de tempo, espaço e causalidade. A dualidade sob qualquer forma é abolida. A ideia-de-tempo implica na existência de duas coisas consecutivas, a ideia-de-espaço envolve a existência de duas coisas não-coincidentes, a ideia-de-causalidade envolve a existência de duas coisas, uma produto da outra.

As condições de Dhyana contradizem as condições do pensamento normal; mas em Samadhi, a diferença é muito maior que em Dhyana. Enquanto Dhyana parece a simples união de duas coisas, Samadhi parece como se todas as coisas subitamente se juntassem e se unissem. Poder-se-ia dizer que em Dhyana existia ainda esta condição em estado latente: que o Um existente era oposto aos Muitos não existentes; mas em Samadhi, o Um e os Muitos são unidos em uma Fusão de Existência com Não Existência. Esta definição não é o resultado de reflexão da minha parte, está sendo feita de memória.

Outra diferença: é fácil conquistar a habilidade de obter Dhyana. Após algum treino, podemos entrar naquele estado sem prática preliminar (e deste ponto de vista, podemos reconciliar os dois significados diversos que os autores dão a esta palavra, os quais discutimos no capítulo anterior). Visto de baixo, Dhyana parece um êxtase, uma experiência tão tremenda que não podemos imaginar algo além; mas visto de cima, é um mero estado mental, tão natural quanto qualquer outro. Frater P., antes de obter Samadhi, escreveu isto sobre Dhyana em seu relatório: “Talvez, como resultado do intenso controle que a gente se esforça por obter, um ataque de nervos violento, como uma tempestade seja provocado: isto nós chamamos de Dhyana. Tanto quanto posso conceber, Samadhi será apenas uma ampliação disto.”

Cinco anos mais tarde, ele não diria isto. Talvez dissesse que Samadhi é a mente fluindo, numa corrente continua, do ego ao não-ego, sem se tornar cônscia de nenhum dos dois; e este fenômeno é acompanhado por um maravilhamento e uma felicidade sempre crescentes. Ele pode compreender que isto seja o resultado natural de Dhyana, mas não pode mais chamar Dhyana, como antes, de precursor de Samadhi. Ele não tem certeza das condições que induzem Samadhi. Ele pode produzir Dhyana à vontade, no curso de alguns minutos de concentração, e o fenômeno frequentemente ocorre de maneira aparentemente espontânea. Mas com Samadhi, infelizmente, este não é o caso. Ele provavelmente pode conseguir Samadhi à vontade, mas não sabe dizer precisamente como, nem predizer quanto tempo levará antes do fenômeno ocorrer; e não pode ter certeza completa de que o conseguiria.

Todos temos certeza de que podemos caminhar um quilômetro sobre uma estrada plana. Conhecemos as condições, e seria preciso um conjunto muito extraordinário de circunstâncias para nos impedir de completar a caminhada. Mas é igualmente certo dizer: “Eu já escalei o Pico da Neblina, e sei que posso escalá-lo novamente.” No entanto, existe um conjunto de circunstâncias possíveis, e mais ou menos prováveis, que poderiam impedir o nosso sucesso.

Nós sabemos isto ao certo: que se o pensamento for conservado único e firme, Dhyana ocorre. Mas não sabemos se uma simples intensificação disto é suficiente para causar Samadhi, ou se outras condições adicionais (ou outras circunstâncias bem diversas) são necessárias. Obter Dhyana já é ciência. A obtenção de Samadhi continua no terreno do empirismo.

Um dos autores clássicos diz (se nossa memória não nos engana) que doze segundos de concentração dão Dharana, quarenta e quatro dão Dhyana, e mil setecentos e vinte e oito dão Samadhi. E Vivekananda, comentando Patanjali, faz de Dhyana um mero prolongamento de Dharana, mas acrescenta: “Suponhamos que eu estivesse meditando sobre um livro, e gradualmente conseguisse concentrar minha mente sobre ele até perceber apenas a sensação interna, o significado subentendido em qualquer forma material: este estado de Dhyana é chamado Samadhi”.

Outros autores opinam que Samadhi resulta de meditar sobre assuntos que são, em si mesmos, “dignos”. Por exemplo, Vivekananda diz: “Pense em qualquer assunto santo.” E explica a recomendação da seguinte forma: “Isto não significa qualquer assunto malvado.” (!)

Frater P. hesitaria em afirmar que conseguiu Dhyana meditando sobre objetos comuns. Ele abandonou a prática deste tipo de meditação após alguns meses, e começou a meditar sobre os Cakkrams, etc. Também, Dhyana começou a ocorrer com tanta frequência que ele parou de registrar a ocorrência. Mas se desejasse atingir aquele estado neste instante, ele escolheria algo para excitar seu “temor a Deus”, ou “reverência”, ou “maravilhamento”[3]. Não existe qualquer motivo aparente por que Dhyana não deva ocorrer ao pensarmos em algum objeto comum numa praia – por exemplo, um siri; mas Frater Perdurabo constante referencia a este como o objeto normal de sua meditação que não precisa ser tomada au pied de la lettre. Seus registros de meditação não contêm qualquer referência a este notável animal.

Será esplêndido quando uma pesquisa disciplinada, usando métodos científicos, executada por muitas pessoas, permitir a determinação das condições de Samadhi. Por enquanto, não parece ser contraproducente seguirmos simplesmente a tradição de nossos antecessores, e usarmos os mesmos objetos de meditação que eles usaram – com uma única exceção que mencionaremos adiante.

O primeiro tipo de objetos para meditação séria (isto é, já não mais a prática preliminar, em que devemos usar apenas objetos simples da vida diária, que são mais fáceis de manter definidos) são diversas partes de nosso corpo. Os hindus possuem um complicado sistema de anatomia e fisiologia que aparentemente não tem qualquer relação com os fatos de uma sala de dissecação. Proeminentes em seu sistema estão os sete Cakkrams, que serão descritos na Parte II deste livro. Existem também vários “nervos”, igualmente mitológicos.

O segundo tipo são objetos de devoção, tais como a ideia ou a forma da Deidade, ou o coração ou o corpo do nosso Instrutor, ou de algum homem que respeitamos profundamente. Esta prática não é recomendável, porque estimula os preconceitos na mente.

Podemos também meditar sobre nossos sonhos. Isto parece superstição; mas a ideia é que você já tem uma tendência, independente de sua vontade consciente, a pensar nessas coisas (ou não sonharia sobre elas); consequentemente lhe será mais fácil se concentrar sobre elas do que sobre outras.

Você pode também meditar sobre qualquer coisa que lhe agrade especialmente.

Mas com tudo isso, sentimo-nos inclinados a sugerir que será melhor, e de maior peso, se a meditação for dirigida a algum objeto que seja, em si, aparentemente sem importância. Nós não queremos que a mente se excite de nenhuma forma, nem mesmo por adoração. Veja os três métodos de meditação dados em Liber HHH (The Equinox I:6)[4]. Ao mesmo tempo, não podemos negar que será muito mais fácil se escolhermos alguma ideia sobre a qual a mente tenda a fluir naturalmente.

Os hindus afirmam que a natureza do objeto da meditação determina o Samadhi, isto é, esses Samadhis menos elevados que conferem os assim chamados “poderes mágicos”. Por exemplo, há os Yogapravritti. Meditando sobre a ponta do nosso nariz, obtemos aquilo que se poderia chamar “o cheiro ideal” – isto é, um cheiro que não é nenhum cheiro em particular, mas que é o cheiro arquetípico, do qual todos os cheiros perceptíveis são modificações. É o “cheiro que não é um cheiro”. Esta é a única descrição razoável: pois a experiência sendo contrária à razão, é consequentemente razoável que as palavras que a descrevem sejam assim também[5].

Da mesma forma, concentração sobre a ponta da língua dá o “gosto ideal”; sobre o dorso da língua, o “tato ideal”. O Bhikku Ananda Metteya dá a seguinte descrição desta experiência: “Todo átomo do corpo entra em contato com todo átomo do Universo simultaneamente.” A meditação sobre a raiz da língua dá o “som ideal”, e meditação sobre a faringe dá a “visão ideal”[6].

O mais importante desses êxtases, porém, é Atmadarshana, o qual para alguns (e estes não os de menor experiência) é o primeiro verdadeiro Samadhi; pois mesmo as visões de “Deus” e do “Augoeides” estão manchadas pela forma. Em Atmadarshana, o Todo se manifesta como o Um: é o Universo livre de quaisquer condições. Não só são todas as formas e ideias destruídas, mas também as concepções que jazem implícitas em nossas ideias daquelas ideias. Cada parte do Universo torna-se o Todo, e causa e efeito não mais são separados[7].

Mas é completamente impossível descrever este estado mental. Podemos apenas especificar algumas de suas características, como fizemos acima; mas a linguagem usada não deve formar qualquer imagem na mente. É impossível a qualquer pessoa que experimente este estado trazer de volta dele qualquer imagem exprimível no estado mental normal. Nem podemos conceber qualquer estado que transcenda Atmadarshana, quando voltamos de Atmadarshana!

No entanto, existe um Samadhi muito mais elevado, chamado Shivadarshana; do qual é apenas necessário dizer que é a destruição do estado prévio: a aniquilação de Atmadarshana. Para conceber esta extinção devemos imaginar o Nada (único nome possível para isto) como positivo, em vez de negativo.

A mente normal é como uma vela num quarto escuro. Se você abre as janelas, a luz do sol torna a chama invisível. Esta é uma imagem mais ou menos adequada de Dhyana[8].

Mas a mente se recusa a encontrar uma imagem para Atmadarshana. Parece fraco dizer apenas que, se todas as estrelas do universo se juntassem subitamente, apagariam também a luz do sol. Porém, se aceitarmos dizer isto, e procurarmos outra imagem para Shivadarshana, devemos nos imaginar percebendo que esse braseiro universal é escuridão; não uma luz muito fraca comparada com outra luz, mas escuridão em si. Não é uma transição do minúsculo para o vasto, ou mesmo do finito para o infinito. É a percepção do fato de que o positivo é apenas o negativo. A “verdade final” de Atmadarshana é percebida não apenas como falsa, mas como a contradição lógica da “verdadeira verdade”. É completamente inútil prolongar este tema, que até o presente tem derrotado todas as mentes que procuraram expressá-lo. Nós tentamos aqui dizer o mínimo, e não o máximo, possível[9].

Ainda mais longe do nosso propósito de sermos simples estaria comentarmos aqui as inumeráveis discussões entre místicos sobre se Shivadarshana é o derradeiro Samadhi, ou sobre o efeito de Shivadarshana em nossa vida subsequente. Basta dizermos que até mesmo o primeiro e mais efêmero dos Dhyana nos paga mil vezes pelas dores que podemos ter tido buscando alcançá-lo.

E existe mais um encorajamento para principiantes: todo trabalho que se executa nessa direção tem efeito cumulativo. Todo ato dirigido à consecução espiritual é mais uma pedra acrescentada à pirâmide de um destino que algum dia chegará a fluir. Possam todos conseguir!


  1. A vulgaridade e insularidade do cânone budista são repulsivas a todo intelecto sadio, e as tentativas de usar os termos de uma filosofia egocêntrica para explicar os detalhes de uma psicologia cuja principal doutrina é a negação do ego foi obra de um imbecil malicioso. Rejeitaremos sem hesitar a confusão inteira, e seguiremos o significado etimológico da palavra, conforme dado acima! ↩︎

  2. Aparentemente. Isto é: os resultados óbvios do diverso. É possível que o fenômeno tenha uma causa única, refratada em diversos planos de consciência. ↩︎

  3. É uma quebra no ceticismo que é a base do nosso sistema admitir que algum assunto seja melhor que qualquer outro. Formulemos a posição assim: “A é um assunto que B considera santo; portanto, é natural para B meditar sobre A”. Desfaçamo-nos do ego, observemos todos os nossos atos como se fossem os atos de outra pessoa: desta forma evitaremos noventa e nove por cento dos obstáculos que estão à nossa espera no caminho. ↩︎

  4. Estas meditações são complementos dos três métodos de Entusiasmo (instruções da A∴A∴ ainda não emitidas até março de 1912). ↩︎

  5. Daí o Credo de Atanásio. Compare-se com isso a descrição no Zohar: “A Cabeça que está acima de todas as Cabeças; a Cabeça que não é uma Cabeça”. ↩︎

  6. Igualmente, Patanjali nos diz que se praticarmos Samyana sobre a força de um elefante ou um tigre, adquirimos aquela força. Se você conquistar o “nervo Udana” você pode caminhar sobre a água; o “nervo Samana”, você começa a emitir luz; os “elementos” fogo, ar, terra e água, e você pode fazer tudo que na vida normal eles lhe impedem de fazer. Por exemplo, conquistando “Terra” podemos tomar um atalho para ir à China; conquistando “Água” podemos morar no leito do rio Ganges. Dizem que há um santo em Benares que faz isto, vindo à tona somente uma vez por ano para confortar e instruir seus discípulos. Mas ninguém precisa acreditar nestas coisas a não ser que queira; e aconselhamos mesmo que o estudante domine o desejo de acreditar nelas. Será interessante quando a pesquisa científica tiver investigando os termos destas equações. ↩︎

  7. Isto é tão completo que não só o “Preto é o mesmo que Branco”, mas também “A brancura do Preto é a essência de sua Pretude”. O Nada é igual ao Um, que é igual ao Infinito; mas isto é verdadeiro apenas por causa deste arranjo triplo, desta trindade ou triângulo de contradições. ↩︎

  8. Nota de Virakam: Aqui o ditame foi interrompido enquanto Frater Perdurabo pensou prolongadamente, buscando imagens para Atmadarshana e Shivadarshana. ↩︎

  9. E no entanto, este falatório todo proveio do nosso desejo de sermos tão modestos quanto Yajna Valkya! ↩︎


Traduzido por Marcelo Ramos Motta (Frater Ever). Revisado por Frater ΑΥΜΓΝ.

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