Introdução

Este artigo é um capítulo de Milinda Panha - As Perguntas do Rei Milinda

Aspectos técnicos do dogma budista, ilustrados por diálogos.

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Introdução

Nos países asiáticos, onde predomina o budismo com as várias seitas, o Milinda Panha ‒ “Perguntas de Milinda”, é um texto que os monges e fiéis budistas leem e veneram. O autor é desconhecido, mas a senhora Rhys Davids (The Milinda Questions), admite que tenha sido um pandit (bacharel) da casta bramânica. Segundo essa afamada indianista, terminando o pandit o seu curso em alguma escola nas proximidades de Sagala, o moço brâmane, cujo nome deve ter sido Manava, dedicou-se à profissão de redator de trabalhos literários e de cartas particulares, para a assinatura de pessoas das altas castas, e à de professor particular. Nessa qualidade, teria sido Manava admitido no palácio real a serviço do rei Dionísio, sucessor de Milinda.

Milinda é a tradução do nome grego Menandro. Durante a estadia na Índia, Alexandre instituiu rei um dos seus generais, do qual descendia Menandro. O seu antecessor, Demétrio, cerca do ano 175 a.C., transferiu sua capital de Bactriana para o Pendjabe.

Informa Estrabão que esse monarca estendeu suas conquistas até o rio Jamuna, tendo até alcançado o rio Pataliputra, segundo autores hindus. Menandro teria reinado durante a segunda metade do século II a.C. Era um rei que gostava de participar de discussões filosóficas, como também gostavam disso gregos e hindus.

Um dia, supõe ainda a Sra. Rhys Davids, no palácio do rei Dionísio, decidiu-se abrir o armário onde se guardavam as placas metálicas em que o brâmane pandit reproduzira as memoráveis discussões do rei Milinda com um clérigo inteligente e instruído. O texto teria sido copiado em folhas de matéria vegetal, amarradas em rolo. Mas quem teria sido o redator das placas metálicas? Manava?

Ignora-se o nome do autor, que a senhora Rhys Davids assegura ter sido não um monge budista, mas um brâmane que conhecia bem a doutrina do Sáquia-Muni. Aliás, naquela época em que o budismo se alastrava pela Índia, ameaçando o prestígio da casta bramânica, os brâmanes já estudavam a teoria divulgada pelos adeptos daquela heresia, a fim de rebaterem a palavra dos monges, nas escolas, nos lugares públicos, nas reuniões em palácios reais ou senhoriais.

De qualquer modo, o texto reproduzido por Manava não somente revela liberdade na maneira de dispor da matéria, como também que ele era mais filósofo e mais original pensador do que teria sido o monge Nagasena, se este realmente tivesse existido.

Note-se ainda que admitem os indianistas ter sido o primitivo texto, atribuído a Manava, alterado quanto disposição dos capítulos e talvez quanto ao seu número. Informa Louis Finot que no Tripitaka chinês há dois textos de uma obra intitulada Na-Sien Pi-Kien King (Livro do bikchu Nagasena). Essa obra é tradução do Milinda Panha, feita nos tempos da dinastia dos Tsin (317-420 da Era cristã). A tradução não foi do pali e sim de um original, talvez redigido em um dos idiomas vulgares do Noroeste da Índia. Esse original, na opinião de Louis Finot, é mais arcaico do que o texto levado à ilha de Ceilão.

No livro em chinês, o Milinda Panha reduz-se a três partes, sendo que o teor da terceira, na opinião desse indianista francês, é qualitativamente inferior à segunda. Antes da tradução francesa de Louis Finot (1923), Rhys Davids traduziu as partes I e III, para a coleção Livros Sagrados do Oriente, dirigida por Max Müler.

Ignora-se a data da primeira redação do Milinda Panha. Entretanto, a respeito há uma referência cronológica certa: o ano 420 da nossa Era para a versão chinesa. Em todo caso, é lícito admitir que essa redação tenha sido feita, séculos antes.

Finot admite que a prosa é pessoal, com estilo diferente do que se lê nos Pitakas e em outras escrituras budistas. Acrescenta o mesmo indianista francês: “Estaríamos propensos a reconhece?* nessa forma original e quase insólita, uma influência helênica. Na viela que anima os personagens, na vivacidade do diálogo, na rapidez das respostas, na sobriedade das frases, há qualquer coisa que lembra mais as palestras socráticas da Academia do que as conferências difusas e lentas do Jetavana”.

No Milinda Panha expõe-se a doutrina do Hinayana (pequeno veículo), que é a doutrina professada na Ilha do Ceilão, na Birmânia, nos países da península da Indochina (p-ex, Vietnã), na Tailândia, na área das nações da Insulíndia, no Oceano Pacífico. Essa doutrina bem se pode denominar ortodoxa e é praticada pelos monges que seguem a tradição dos Theravadins.

No ano 624 a.C., segundo a tradição budista, nasceu em Kapilavastu, capital de um pequeno reino no Nepal, Nordeste da índia, o príncipe Siddharta Gautama. O pai, o rei Suddhodana, pertencia à tribo dos Sakkyas e a mãe chamava-se Maha-Maya, falecida sete dias depois de nascido Gautama.

Diz a lenda de Gautama que um eremita de nome Asita ao ver o recém-nascido, predisse que ele seria um Buda. Daí lhe terem dado os progenitores o nome Siddharta, que significa “aquele que realizou a sua missão”.

O pai mandou construir três palácios, onde viveria o príncipe, na companhia de muitas esposas, em conformidade com a tradição poligâmica oriental, distraído nas frequentes diversões e praticamente prisioneiro naqueles ambientes luxuosos. Isso porque o rajá seu pai pretendia que o filho fosse seu herdeiro, em vez de Buda.

Afinal, casou-se o príncipe, aos 16 anos, com uma jovem da mesma casta, sua prima, a princesa Yasodhara. As núpcias celebraram-se de acordo com o ritual dos Gandharvas. Segundo esse ritual, os noivos sentam-se em uma almofada com tecido de fios de ouro. O braço esquerdo do noivo e o direito da noiva são amarrados um ao outro por fios de seda. Corta-se o bolo nupcial, espalha-se arroz no solo e borrifa-se de perfume a sala, onde se ergue um altar em que arde uma chama. Os noivos dão três voltas, cada uma com sete passos, em torno do altar. No leito, colocam-se duas palhas que simbolizam a união até a morte.

Nasceu-lhes um filho de nome Rahula. Mas não obstante aquela existência feliz, o príncipe Siddharta pensava em conhecer o mundo que se estendia além dos muros dos parques dos três palácios. E um dia, conseguiu sair até a cidade, acompanhado do fiel serviçal de nome Tchanna. Enquanto passeava, ele viu um ancião decrépito, um doente conduzido por outras pessoas em uma padiola, um cadáver que estava sendo levado para ser incinerado em uma fogueira, e afinal um monge.

Aqueles encontros impressionaram Gautama, que não podia entender o que significavam. O lacaio explicou-lhe que todas as criaturas envelhecem, adoecem e morrem. Disse-lhe quem era o homem vestido de monge. Depois daquele passeio, Gautama não mais sentiu prazer nas diversões do palácio.

Resolveu fugir. Uma noite, montado no seu cavalo Kantaka, acompanhado de Tchanna, o príncipe Siddharta, depois de olhar a esposa adormecida e o filhinho, saiu do palácio sem ser visto pelos guardas. Distante da cidade, cortou os cabelos, desfez-se das vestimentas principescas, que entregou ao lacaio para que as levasse ao rei.

Dirigiu-se à cidade de Rajagriha, capital do reino de Magadha. De lá afastou-se para viver em companhia de dois brâmanes, que lhe ensinaram a doutrina tradicional, explicando-lhe a doutrina do Karma, o ritual védico, os métodos ascéticos. Não lhe satisfazia, entretanto, o ensino daqueles dois brâmanes. O príncipe Siddharta foi frequentar os templos, visitas que lhe causaram tristeza e aversão pela crueldade dos sacrifícios dos animais. Convenceu-se da ineficácia daqueles sacrifícios, da verbiagem das preces, da inutilidade das fórmulas mágicas. Desenganou-se do valor do culto aos deuses.

Continuando sua peregrinação, chegou ele a um eremitério onde viviam cinco ascetas, na floresta de Uruvila, à margem do rio Nairanjana. Durante cinco anos, conviveu com aqueles eremitas, acompanhando-os em suas práticas ascéticas rigorosas. Chegou ao ponto de ingerir apenas um grão de arroz por dia.

Apesar dessa penitência, Gautama concluiu que os rigores em nada contribuíam para a solução do seu problema, que era o do conhecimento da causa do sofrimento, do qual ele tivera um exemplo impressionante no velho, no doente e no cadáver. Verificou que a mortificação não extingue o desejo, que o conhecimento não se obtém com o organismo enfraquecido, que o sofrimento físico perturba o espírito, assim incapacitado de manter a tranquilidade necessária à meditação.

Afinal, um dia, depois de um banho no rio próximo ao eremitério, voltando para a sua cabana, caiu e ficou estendido no solo como se tivesse morrido, tal a sua fraqueza. Os monges supuseram-no, realmente, morto. Mas a filha cie um pastor, chamada Nanda, passava pela estrada, levando a refeição dos pastores. Viu que ele ainda estava vivo e deu-lhe a comer uma tigela de arroz de leite. Gautama aceitou o alimento e não tardou em reanimar-se. Resolveu não continuar com o jejum. Essa resolução escandalizou os outros eremitas, que se afastaram de Gautama. Este saiu à procura ele um local, onde pudesse entregar-se às meditações. E na noite da lua cheia de Vesak (data correspondente ao mês de maio do ano de 544 a.C. ), sob a copa da árvore Bodh Gaya, em uma clareira na floresta, o príncipe Siddharta atingia a plenitude de consciência que lhe proporcionou a sabedoria, o conhecimento da razão de ser elo sofrimento. Teria sido talvez essa iluminação uma percepção intuitiva, análoga à que ocorreu com Isaac Newton, também sentado perto de uma árvore, que teve a intuição da fórmula da lei de gravitação universal ao ver cair uma elas maçãs que pendiam do galho de uma macieira.

Naquela intuição sintetizava-se a percepção da origem do sofrimento, problema que estava sendo trabalhado pelo espírito de Gautama. Agora a sua inteligência iria desenvolver os raciocínios, os argumentos que seriam o suporte da doutrina. Resolveu divulgar a sua descoberta da verdade, assim auxiliando os seres humanos a se libertarem do sofrimento. Dirigiu-se logo aos cinco eremitas, com os quais convivera nos últimos tempos. No caminho, encontrou-se com um antigo conhecido, a quem narrou o que lhe acontecera. O conhecido recusou admitir fosse Gautama um Jina (vencedor). Os companheiros no eremitério receberam-no com frieza. Mas Gautama, agora o iluminado, venceu a indiferença dos cinco eremitas, demonstrando-lhes a verdade do ensino que leva à libertação cio sofrimento e à realização do Nirvana. Um deles, o mais velho, declarou: “Tu achaste a Verdade!”

Então rogaram os eremitas que o Mestre lhes desse a ordenação e pronunciaram os três votos de obediência:

“Recorrerei ao Buda com fé!”

“Recorrerei à doutrina com fé!”

“Recorrerei à Congregação com fé!”

Assim ficou instituído o Sangha, a Igreja de Buda, que depois se dirigiu à cidade de Benares, onde proferiu o seu primeiro grande sermão. Os frutos desse sermão foram numerosos conversos à doutrina. Muitos deles fizeram votos de obediência religiosa.

Afastando-se de Benares, hospedou-se Buda em casa do brâmane Kaciapa. Esse brâmane criava uma cobra, que estava sempre perto do altar onde se achava o fogo, que o brâmane mantinha aceso, de acordo com a tradição. Kaciapa receou hospedar Gautama, pois temia que a serpente picasse o Buda. Mas durante a noite, Gautama, na sala onde ficara, repeliu os botes da cobra que morreu de raiva, na opinião dos devotos de Buda. Pela manhã, embora satisfeito por encontrar Buda vivo, Kaciapa sentiu inveja do Mestre. Este, percebendo o pensamento do brâmane, demonstrou-lhe ser pernicioso esse pensamento, que resultava em obstáculo no caminho da santidade. Arrependido, Kaciapa rogou sua admissão no Sangha.

Buda aconselhou-lhe consultar os seus discípulos, que eram Jatilas, adoradores do fogo. Estes não se opuseram a que o brâmane se convertesse à doutrina de Gautama, pois eles também pediram sua admissão no Sangha.

Voltando a Rajagriha, acompanhado de Kaciapa, Gautama converteu o rei Bimbasara. Desde então sucederam-se as conversões. O seu pai enviou-lhe um mensageiro, pedindo a Gautama que fosse vê-lo. Buda acedeu ao chamado paterno. E o rei Suddhodana, em companhia dos parentes e de, toda a corte foi ao encontro do filho. Este, vendo o pai acabrunhado por ver o filho viver como um monge mendigo, o que implicava em humilhação para o monarca, observou-lhe então: “Os laços de amor que vos ligam ao filho, estendem-se com a mesma bondade a todos os seres. Estais agora recebendo alguém maior do que Siddharta. Estais recebendo o Mestre da Verdade, o Apóstolo da Justiça! A paz do Nirvana entrará em vosso coração!”

O rei voltou para o palácio e Gautama foi passar a noite na mata próxima. Pela manhã, ele tomou a tigela e foi pedir esmola à porta das casas na cidade. Esse procedimento de Buda escandalizou a Corte e levou o rajá a repreendê-lo.

Buda desculpou-se, dizendo:

― Todos os da minha linhagem procedem assim...

― Como? ‒ perguntou-lhe o pai surpreso. ‒ Os teus antepassados foram reis! Jamais nenhum deles mendigou alimento!

― Grande rei ‒ observou Gautama ‒ o senhor e sua família têm direito a se dizerem descendentes de reis. Mas eu descendo de Budas, desde tempos remotos. Todos viveram mendigando o seu alimento.

Buda também visitou sua esposa, a princesa Yasodhara. Durante sua permanência em Kapilavastu, converteram-se à doutrina, recebendo a ordenação monacal, seu primo irmão, Ananda, seu cunhado Upali, o barbeiro da Corte, o filósofo Anuruddha, também primo do Sáquia-Muni, e por último seu filho Rahula, embora ainda adolescente.

Algum tempo depois, Buda caminhou até Çravasti, para ver o edifício que lhe fora oferecido pelo príncipe Djeta e pelo ricaço Anathapindika. Aceitou a doação e voltou a Kapilavastu. Logo após o seu regresso à cidade natal, Gautama adoeceu. O médico que o tratou recomendou-lhe andar vestido, pois o Mestre cobria-se apenas de andrajos. Foi por esse tempo que faleceu o rei seu pai.

Até então, Siddharta recusara admitir mulheres no Sangha. A esposa Yasodhara já lhe havia solicitado, por três vezes, a admissão na Comunidade. Morto o progenitor, a madrasta de Buda fez-lhe o mesmo pedido, acompanhada de Yasodhara e de muitas outras mulheres. Afinal, o Bem-aventurado consentiu em admitir monjas no Sangha.

O Tathagata dedicou-se desde então ao apostolado, peregrinando por várias regiões para converter homens, para levá-los ao caminho da libertação. Só deixava de caminhar durante a estação chuvosa.

Foi em uma dessas viagens, quando Gautama já estava com 80 anos de idade, em 460 a.C., que Buda entrou no Nirvana. Em seu caminho teria de passar pela cidade de Pava, onde morava um budista, o ferreiro Cunda, que mandou preparar uma boa refeição para o Mestre e seus monges. Retirando-se para descansar na casa onde se abrigavam os companheiros de Buda, este sentiu-se mal e deitou-se, como era seu costume, sobre o lado direito. Advertiu Ananda de que não tardaria a subir ao Nirvana. O Buda, segundo os discípulos, teria falecido em consequência de intoxicação alimentar.

Em seu livro traduzido ao português por Gustavo Barroso, intitulado Jesus Desconhecido, observa Merejkovsky que, se o Cristo escreveu uma só vez na areia, Buda nem na areia escreveu. Assim a doutrina do Tathagata foi transmitida à posteridade pelos discípulos, logo após o falecimento do Mestre, reunidos em Concílio, na cidade de Rajagriha, sendo presidente o venerável Kassapa. Ananda, primo irmão do Sáqui-Muni, que teria sido uma espécie de João Evangelista, redigiu o texto dos sermões, os Sutras. Kassapa foi redator não somente do Vinaya (Livro das regras monásticas), como também do Abhidhamma (Lei superior), que trata de psicologia e de metafísica.

Um século depois, reuniu-se o segundo Concílio, em Vesali, durante o qual ocorreu a cisão da congregação budista. Um grupo de monges propôs fossem menos rigorosas as regras disciplinares. A maioria dos monges, entretanto, rejeitou a reforma proposta por aqueles que se denominariam Mahasanghikas (adeptos da grande comunidade), os quais seriam os religiosos que instituiriam o Mahayana. Os tradicionalistas, os Sthaviras, também se denominariam Theravadins, fiéis ao ensino dos velhos (theras).

A diferença doutrinária entre os dois ramos do budismo está nos seguintes pontos:

Os adeptos do Mahayana afirmam que a consciência búdica já se acha em estado potencial no ente humano, podendo assim atualizar-se mediante as práticas ascéticas. Os monges do Hinayana ensinam que a consciência búdica é adquirida, sendo efeito da exata observância das normas prescritas no Vinaya.

Um terceiro Concílio realizou-se em Pataliputta, sob a direção do monge Tissa. Patrocinou-o o imperador Assoka, entusiasta adepto do budismo. Teve esse Concílio por finalidade a revisão e a confirmação do cânone e ao mesmo tempo, a rejeição da ideia de reforma disciplinar. Segundo Christmas Humphreys, teria sido convocado por Theravadins.

O imperador Assoka promoveu um movimento missionário, estimulando a ação de apóstolos budistas, que viajaram até a Síria, o Egito, a Macedônia, Cirene, o Épiro e a ilha do Ceilão. A época do monarca, já comparado ao romano Constantino, marcou o período áureo do budismo na Índia. Logo após a morte do imperador, empenharam-se os brâmanes em uma reação tenaz, no combate à nova doutrina. O resultado da reação bramânica foi o recuo cio budismo, no território propriamente hindu.

Mas a doutrina do Sáqui-Muni já se divulgara por uma larga e extensa área do continente asiático. O Hinayana enraizara-se no Ceilão, em Burma, na Indochina, no Camboja, na Tailândia, e em outras áreas do sudeste da Ásia. O Mahayana foi ao Tibete, entrou na China, na Coréia e alcançou o Japão, onde, aliás subdividiu-se em 17 seitas uma das quais, o Zen, cindiu-se em três ramos.

Se no tempo do imperador Assoka já se haviam delineado as diferenças entre os monges budistas, as divergências de cunho doutrinário e relativas à pragmática da vida religiosa assumiram feição definitiva no século I antes da era cristã.

Já no segundo Concílio, cem anos depois do falecimento de Gautama, os Sthaviras tinham iniciado a cisão, no plano da aplicação dos preceitos disciplinares, compendiados no Vinayapitaka, suscitando assim o cisma dos Mahasanghikas. Afinal, no século I a.C., já tinham assumido feição definida as discrepâncias, rivalidades e até mesmo atritos. Ainda hoje não se eliminaram os pontos sensíveis na interpretação dada pelos adeptos de uma e de outra das duas maiores igrejas budistas. Ofereço um resumo do complexo doutrinário do Hinayana e do Mahayana.

O Hinayana (pequeno veículo) atém-se aos significados formais e vocabulares da doutrina, considerada segundo critério escolástico, objetivista, racionalístico. Para um adepto do Hinayana, o significado de um texto se acha no teor do próprio texto.

Os hinaianistas defendiam o rigorismo ascético. Afirmavam que não poderia atingir o objetivo da vida budista quem não se dedicasse ao ascetismo, subjugando desejos, afetos, paixões.

O Mahayana (grande veículo) foi instituído pelos monges budistas que rejeitavam o critério dos Theravadins para a interpretação da doutrina. A denominação da escola possibilitava o significado de “ensino com maior alcance”.

Um exemplo da diferença entre as duas escolas pode ser dado pela concepção do Arhat. Segundo o Hinayana, o Arhat é o homem que atingiu a santidade perfeita, estando liberto da necessidade do renascimento. Mas de acordo com os pressupostos da escola, ele não se sente disposto a estender às demais criaturas os benefícios da compaixão, do amor que o Arhat pode dispensar aos entes humanos sofredores. Advertem os mahaianistas que o Arhat, no Nirvana, para beneficiar alguém não vai além do conselho, da exortação à perseverança na prática da virtude. Isso porque o Nirvana depende só do esforço individual. O Arhat é um exemplo do individualismo espiritualista. Quem não se esforçar, praticando o autodomínio dos sentidos, não atingirá a outra margem do oceano da existência. Para essa travessia, o monge contará somente consigo, ninguém o auxiliará.

Segundo os adeptos do Mahayana, esse individualismo não estava de acordo com o pensamento de Buda. Sem dúvida, Gautama obtivera o conhecimento que leva ao Nirvana, depois de vários renascimentos, do esforço perseverante, da prática das seis virtudes. Mas resultou da sua iluminação mais do que benefício apenas individual, houve uma graça extensiva a todos os seres humanos. Sem a participação de outras criaturas nos benefícios da iluminação, esta carece de sentido. O Arhat deve sentir-se unido a todos os seres humanos. O seu amor não exclui ninguém, envolve todas as criaturas.

Para os hinaianistas, a prática das regras ascéticas exigia a extinção dos desejos, a submissão aos exercícios severos, o rompimento dos laços de família. Somente assim, poderia o monge nutrir a esperança de renascer em melhores condições e afinal alcançar o Nirvana.

Os que se filiavam ao Mahayana não admitiam a necessidade de rigorismo para a salvação. Segundo eles, a religião prescinde de exclusivismos. O conhecimento final, que implica em salvação, não decorre da extinção das paixões e dos desejos. A salvação decorrerá da extirpação do egoísmo implícito nos impulsos, nas tendências da personalidade, na vontade exercida em desacordo com os princípios do amor, da tolerância e da compreensão dos motivos dos erros dos nossos semelhantes. Os chefes de família, até os vagabundos, podem obter a iluminação. Para isso lhes bastará admitirem que há uma verdade, que é a verdade ela doutrina do Tathagata.

Quanto à concepção da natureza da personalidade do Mestre, o Mahayana admite que Buda seja não somente um ente histórico, mas também um ser espiritual, ilimitado, universal, cuja individualidade se estende além de todas as formas, sendo também capaz de assumir qualquer forma. Para os mahaianistas, este é um dos princípios fundamentais da sua doutrina.

Por isso mesmo, em conformidade com a ideia de expediente útil (upaya), a energia búdica encarna-se em muitas formas, para auxiliar os homens a se livrarem da ignorância e da miséria morai. Daí a multidão de Iludas e de Bodisatvas, cultuados nas várias igrejas ou seitas budistas, oriundas do Mahayana.

Quaisquer que sejam, entretanto, as escolas e seitas, todas se apoiam em uma doutrina originária, comum. Essa doutrina envolve quatro princípios ou fundamentos teóricos: 1 ‒ O Karma; 2 ‒ As quatro nobres verdades; 3 ‒ O vazio; 4 ‒ O Não-Eu.

O Karma é um processo universal de ação, em virtude do qual tudo produz efeito. Procede, mecanicamente, segundo o maior ou menor grau de energia implícita em um ato.

De acordo com o ensino budista, não há limites no tempo ou no espaço para ocorrer o efeito de um ato. Em se tratando de criaturas humanas, a existência feliz ou infeliz, no mundo físico, a permanência em um céu ou em um inferno, depois da cisão de Nama-Rupa (a morte física), são efeitos de atos bons ou maus, são efeitos cármicos.

As quatro nobres verdades são: a) o sofrimento; b) a causa do sofrimento, o desejo; c) a anulação do desejo; d) os meios de anulação do desejo.

A causa do sofrimento é o desejo, a sede da existência. Bhava é uma força tão potente que arrasta o ente humano à vida terrestre.

O desejo insatisfeito apoia-se na ignorância (avidya), que dá origem às tendências ‒ sâmsaras, às inclinações perversas. É o desejo a energia de onde provém a vida dos sentidos (vedana), a sede de sensações (trishna), a estrutura pessoal, conjunto de elementos físicos e psicológicos (nama-rupa), que exprime o Karma ao qual está condicionada essa estrutura físico-psicológica.

A supressão do sofrimento ocorre quando o homem se liberta dos atributos do ente, ou seja, dos skandas.

Os skandas compreendem: a) qualidades materiais: extensão, solidez, cor; b) sensações; c) percepções, conceitos; d) disposições psicológicas e intelectuais; e) pensamentos.

Os skandas, agentes da tendência ao gozo, suscitam o processo cármico, mediante o qual funciona a lei de causa e efeito. Daí o encadeamento dos 12 Nidanas:

1o ‒ Causa da existência;

2o ‒ O sofrimento, inerente à condição do ser;

3o ‒ A causa do sofrimento, o nascimento;

4o ‒ A causa do nascimento, a concepção;

5o ‒ A causa da concepção, o desejo;

6o ‒ A causa do desejo, a sensação;

7o ‒ A causa da sensação: o contato;

8o ‒ A causa do contato, que está nos sentidos;

9o ‒ A causa dos sentidos: a forma;

10o ‒ Expressa pelo termo Nama-Rupa; a causa do Nama é o entendimento;

11o ‒ A causa do entendimento vem dos conceitos;

12o ‒ Os conceitos decorrem da ignorância (avidya).

Para a libertação dos sofrimentos oriundos de desejos insatisfeitos e de necessidades causadas vela ignorância é indispensável dominar desejos e extinguir necessidades, mediante a anulação de tanha (sede de existir e de sentir). Esse domínio será possível, seguindo-se o Nobre Óctuplo Caminho, em que estão as seguintes oito pistas:

1 –A verdadeira crença na lei de causalidade (Karma);

2 –O pensamento reto;

3 –A linguagem reta;

4 –A ação reta;

5 –Os meios retos de ganhar a própria subsistência;

6 –O esforço reto;

7 –A lembrança exata e a disciplina interna;

8 –A verdadeira concentração do pensamento.

A prática dessas normas faz que se rompam os laços (upadanas), o que possibilitará o acesso ao Nirvana.

Além das normas do Nobre Óctuplo Caminho, o budismo apresenta cinco regras para o procedimento das pessoas que não vivem na reclusão monacal. São as seguintes:

1 –Não matar.

2 –Dar e receber livremente.

3 –Não prestar falso testemunho, nem mentir, nem caluniar.

4 –Não beber líquidos alcoólicos, drogas e outros produtos que perturbem a mente.

5 –Não tocar na mulher de outro homem, não cometer atos carnais contrários à lei natural.

Quanto às meditações, há cinco espécies:

1 –Sobre o amor que devemos sentir para com todas as criaturas, inclusive os inimigos.

2 –Sobre a piedade e a compaixão para em todos aqueles que sofrem.

3 –Sobre a alegria que devemos sentir com a prosperidade das outras criaturas humanas.

4 –Sobre a impureza e as funestas consequências dos pecados.

5 –Sobre a serenidade, condição para alguém colocar-se acima das vicissitudes da existência, considerando cada pessoa, serenamente, a sua própria sorte.

Além dessas cinco espécies de meditação, o monge poderá exercitar-se em outras quatro, que são as de meditação profunda (dhyana) cujos resultados são:

*    Supressão de qualquer prazer libidinoso;

*    Tranquilidade de espirito, alegria plena e satisfação;

*    Atração da inteligência para as coisas espirituais;

*    Pureza e paz interior imperturbável.

Há dois métodos para suprimir-se a paixão e atingir-se o conhecimento, a saber.

1 –Samatha, modo de viver isento de desejos, aplicando-se a vontade, constantemente, ao domínio das funções sensoriais;

2 –Vidarsana, a reflexão metódica para se alcançar o pleno conhecimento das leis da nossa existência, disso advindo a sabedoria.

A prática das meditações e dos métodos de autodomínio possibilita a atualização de faculdades especiais, adormecidas no ente humano, em Nama-Rupa. Denomina-se Abhijna cada uma dessas faculdades, ou Siddhi, que são:

1 –Olho celeste, que possibilita o conhecimento intuitivo de cada objeto ou ser existente no Universo (clarividência);

2 –Ouvido celeste, a capacidade de captar qualquer som (clariaudiência);

3 –A visão de todas as formas do monge em suas existências anteriores e as de qualquer outra criatura;

4 –A capacidade de assumir qualquer outra forma, seja humana, animal ou vegetal (telestesia);

5 –A percepção intuitiva do pensamento alheio;

6 –O conhecimento do passado e do futuro da evolução humana.

Esta exposição dos princípios e normas pragmáticas a serem observadas pelos monges ou fervorosos fiéis budistas não inclui a relação dos fundamentos metafísicos, doutrinários, em que se apoiam os métodos da ética e da ascese do budismo.

Os fundamentos metafísicos do budismo são:

1 –Perpetuidade do Universo.

2 –Impermanência de todas as formas e seres.

3 –Processo universal perpétuo de nascimento, crescimento, morte e renascimento de todos os seres (Sâmsara).

4 –Esse processo universal fenomenológico realiza-se mediante a lei de causalidade, vulgarmente conhecida sob a denominação de Karma.

5 –Ninguém é livre de agir deste ou daquele modo. No entanto, o karma individual possibilita a um indivíduo libertar-se da perpetuidade do Sâmsara, mediante a prática das normas éticas (ascéticas no caso do monge), depois de realizar o conhecimento da razão de ser do Universo e do sofrimento inseparável da existência individual e coletiva.

6 –Ninguém é imortal, nem neste nem nos outros mundos. Segundo o budismo do Hinayana, a vida do ser que alcançou o Nirvana é a ausência de qualquer das vivências características do ente humano e dos seres divinos. Um Buda está além e acima do Bem e do Mal. Mas, sendo indefinida e infinita, essa beatitude não será eterna.

O Mahayana dá ao Buda Gautama, fundador do budismo, o primado universal e a superioridade ontológica sobre todas as criaturas, deuses, devas, gênios, demônios e homens.

Mas, se do ponto de vista do racionalismo, a doutrina budista vale por um grande avanço intelectual, tem o significado de reação generosa em face de privilégios clericais, apresentando uma concepção igualitária do ente humano, nem por isso muitos dos seus postulados são originais ou novos.

A filosofia Sánquia, os Nastikas e até mesmo os Upanichadas forneceram elementos ao budismo. A perpetuidade do Universo era um dos princípios do Sánquia. A inexistência de alma e a impermanência das criaturas eram teses do materialismo nihilista dos Nastikas. A natureza fenomênica do Universo, das coisas e seres nele existentes é afirmada pela Vedanta. A lei de causa e efeito é postulado comum a todas as filosofias na índia.

Mas, ainda assim, o budismo apresenta-se como um dos cimos no lento e longo processo do pensamento humano cujo objetivo estará na humanização do homem, na quebra dos grilhões que o prendem aos mais primários impulsos da animalidade, expressos na agressão, na violência, no desrespeito ao direito de cada um afirmar-se e realizar-se.

Raul Xavier


Traduzido por Raul Xavier

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