O Liber CL – De Lege Libellum
Notas sobre o significado de Liber CL de Aleister Crowley.


O Liber CL – De Lege Libellum ¶
Frater Phi
Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.
O Liber CL vel De Lege Libellum constitui uma instrução iniciática àqueles que desejam viver a Lei de Thelema: Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Foi escrito por Aleister Crowley e publicado em 1919, no The Equinox, Vol III, nº 1. Sua leitura é sugerida ao Estudante da A∴A∴. Esse Liber me marcou. A seguir exponho o que percebi na esperança de estimular a reflexão.
Inicialmente li orientado pela primeira frase do versículo 51 do capítulo I do Liber AL: “51. Há quatro portões para um palácio; o chão daquele palácio é de prata e ouro; lápis–lazúli e jaspe estão lá; e todos os aromas raros; jasmim e rosa, e os emblemas da morte”. Associei cada parte deste Liber ao Pilar do Meio- Luz em Kether, Vida em Tifereth, Amor em Yesod e Liberdade em Malkuth. Noutra vez percebi no número romano CL a síntese do Lamed de Law, Light, Life, Love e Liberty. E Lamed é a letra associada ao Atu VII Adjustament, o que reforça a natureza da instrução do Liber. Numa leitura mais recente, a partir da gematria pitagórica, associei:
Liberty a Kether(1:4)
L = 3 (12 → 1 + 2), I = 9, B = 2, E = 5, R = 9 (18 → 1 + 8), T = 2 (20 → 2 + 0), Y = 7 (25 → 2 + 5). Total: 3 + 9 + 2 + 5 + 9 + 2 + 7 = 37 → 3 + 7 = 10 → 1 + 0 = 1
Light a Chokmah
L = 3 (12 → 1 + 2), I = 9, G = 7, H = 8, T = 2 (20 → 2 + 0). Total: 3 + 9 + 7 + 8 + 2 = 29 → 2 + 9 = 11 → 1 + 1 = 2
Live a Binah
L = 3 (12 → 1 + 2), I = 9, V = 4 (22 → 2 + 2), E = 5. Total: 3 + 9 + 4 + 5 = 21 → 2 + 1 = 3 (Binah)
Love a Yesod
L = 3 (12 → 1 + 2), O = 6 (15 → 1 + 5), V = 4 (22 → 2 + 2), E = 5. Total: 3 + 6 + 4 + 5 = 18 → 1 + 8 = 9 (Yesod)
O subtítulo, uma Sandália, expressa um dos codinomes do Dharma budista, que situa nas percepções humanas o começo, meio e fim da felicidade ilusória e do despertar. Bem, mal, verdade, mentira, deus, anjos, demônios, paraíso, inferno, alegria, tristeza, dor, sofrimento, dentre outros tantos pensamento, sentimentos e emoções com que nos deparamos, são compreendidas e explicadas tendo o entendimento humano como raiz. Nós, somente nós, somos responsáveis por nossas ações, emoções, palavras e pensamentos. A sandália torna-se o refúgio e instrumento que gera, no coração a retidão e a santidade para receber do Mestre Therion o ensinamento sobre os Mistérios da Lei.
No prefácio Mestre Therion conclama “Vide! O Reino de Deus está dentro de você, assim como o Sol, permanece eterno no céu ", indicando que vai falar sobre coisas do Coração e como vivê-la plenamente. Da “Lei brotam quatro Raios ou Emanações” - Luz, Vida, Amor e Liberdade. A Luz adquire substância na Vida de onde emerge o Amor. E quando Luz, Vida e Amor se juntam, vem a Liberdade e “pela Liberdade está o poder para guiar o seu curso de acordo com a sua Vontade”.
No Liber CL o primeiro ensinamento trata da Liberdade: “a menos que sejas livre para agir, não podereis agir”. Mas onde estamos aprisionados? “A maior prisão de todas é a ignorância” do propósito de vida e condição de Estrela. O Mestre enuncia “Vós deveis, portanto, antes de tudo descobrir qual estrela sois dentre todas as estrelas”. Isso é solicitado no juramento de Probacionista “obter um conhecimento científico da natureza e dos poderes do meu próprio ser.” Essa é a Grande Obra cujos Livros Sagrados fornecem “diversos meios para realizar a descoberta” por meio de “experiência direta”.
Por meio da Liberdade se exerce a Verdadeira Vontade. Para conquistar a Liberdade é preciso superar a percepção de dualidade entre mim e o mundo, eu e tu, mente e corpo, especialmente entre Deus e o Ser Humano que afasta e separa o divino da condição humana. Nessa perspectiva a divindade é externa, anterior e acima do humano; e para acessá-la erguem-se instituições, elaboram-se cultos, ritos e estruturam-se religiões, afastando o ser humano de ser uma Estrela e deus de si mesmo. Longe disso, o novo aeon proclama a Liberdade como determina o Liber AL, I, 42: “Tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade. Faze isso, e nenhum outro de dirá não”.
O Faze é laborioso. Envolve paciência, persistência e permanência temperada com entusiasmo de começar e recomeçar sempre e sem “ânsia de resultado”, como pede o Liber AL, I, 44. O Mestre aconselha “Buscai, vós mesmos habilmente, eu vos suplico, analisando seus pensamentos mais íntimos”; é a autoinvestigação, Atma-Vichara vedanta. Adquirir a autoconsciência é difícil para o aspirante nascido no mundo ocidental. “Perseverais, e vós tereis espasmos de asco periodicamente”, pois “vós possuis toda a Liberdade por vosso próprio direito(…) devereis ganhar a Liberdade por vós mesmos em muitas batalhas”.
Conquista-se a Liberdade à medida que se progride no reconhecimento das potencialidades e as despertamos. O Mestre orienta “Oh homem! Observa a ti mesmo”. Observa-te e registra quando, como, onde e porque te afastas da Grande Obra, pois “Nada pode te satisfazer exceto a realização de tua Vontade transcendente, que está oculta dentro de ti”. O Mestre conclama-nos a conquistar a Liberdade; mas, confessa, “ainda assim eu não realizei a minha Vontade: diariamente eu me desvio da tarefa designada. Eu hesito. Eu esmoreço. Eu me demoro”. A conquista da Liberdade nos leva a Amar plenamente. Uma vez que não temos outro direito que não o de fazer a nossa Vontade. Somos convocados a cada instante a batalhar pela conquista da Liberdade, pois “Sucesso é tua prova”, adverte Liber AL,III, 42.
O Amor emana da Liberdade, da Vontade Universal, “Amor é a lei, amor sob vontade” (Liber AL, I, 57). O Mestre, ao falar do Amor, adverte, “o aspirante à nossa santa Ciência e Arte” deve realizar um trabalho de yoga, de unificação consigo mesmo, com seu semelhante e com o mundo, cuja culminância é o sacrifício do ego. Esse trabalho de individuação consiste em “constantemente unir a si mesmo em êxtase com cada uma e todas as coisas que existam através da mais absoluta paixão e desejo de União. Para este fim, tomais principalmente todas as coisas que sejam naturalmente repulsivas”.
Quando estivermos nessa condição espiritual estaremos inteiros e viveremos o Amor sob Vontade e em puro Êxtase. Quem não conquistou a Liberdade não amou plenamente, não foi abrasado no coração. Tal ausência “causa maior ansiedade” e “Aridez”. E mesmo “esta Aridez tem sua virtude, pois é através dela que a alma é purificada daquelas coisas que obstruem a Vontade”. Por conseguinte, “para cada ato de Vontade há uma Aridez particular correspondente: e assim que o Amor cresce dentro de vós, assim ocorre com o tormento de Sua ausência. Que isso também esteja em vós como um consolo no ordálio! Mais ainda, “quanto mais intensa a praga de impotência, tanto mais rapidamente e subitamente ela poderá desaparecer”
O Mestre sugere práticas necessárias ao método do Amor em Meditação, como a atenção plena para aprimorar o ato de observar sem a menor distração, sem se deixar conduzir pelos pensamentos, qualificando-os e julgando-os. Na quietude e em silêncio observar, o que levará a aceitar que tudo traz em seu interior o ser e o não-ser em movimento. Quando isso for apreendido, “será o momento do aspirante direcionar sua Vontade de Amor sobre isso, de forma que toda a sua consciência fique focalizada naquela Única Ideia(…)Então, finalmente, pela pura persistência naquele Ato de Vontade de Amor, o próprio Amor se elevará.”
A instrução não se refere ao amor associado a gênero, sexo e sexualidade, mas da relação entre Estrelas no Corpo de Nuith que é orquestrada pelo Amor Universal no interior do qual o amor humano é a contraparte, pois “todas as coisas são máscaras ou símbolos da Única Verdade”. Por essa prática percebe-se a Unidade e Universalidade do Amor, do Amor sinônimo de Vontade de Potência, de Magia Sexual que une opostos complementares para criar, tal como simbolizado na cobra enrolada no ovo na figura do Atu VI, The Lovers, no Tarô de Thoth. E a criação se torna aquilo que a filosofia da física chama de propriedade emergente, onde o Todo é maior que a somatória das partes. O Mestre indica que “nos nossos Santos Livros estão escritos muitos detalhes sobre as verdadeiras práticas de Amor”.
A Liberdade e o Amor adquirem substância e existência na Vida. Viver torna-se um ato de amor e liberdade, de celebração e alegria. Quando o Mestre escreve Liberdade com L maiúsculo distingue-a da liberdade dos que vivem na ignorância de seu propósito de vida, dos mortos vivos; igualmente ao grafar Amor em maiúsculo diferencia-o do amor humano individual incapaz contemplar o Amor Universal abarcando todos. Nestes Mistérios a Liberdade e o Amor são plenos, por meio dos quais nos tornamos deuses de nós mesmos, somos eternos. Nascimento e morte são momentos de nossa Vida Eterna e Plena, por isso “os sábios do passado escolheram a Serpente como Hieroglifo da Vida.” E o aspirante à Sagrada Sabedoria deve perceber sua Vida não como um elo da Serpente, mas como a própria ascensão desta, como ensina o Liber LXV.
O Mestre oferece alguns exercícios espirituais para o aspirante perceber os níveis de Vida. Adverte que é uma prática extremamente difícil. O primeiro é a aquisição da Memória Mágica, cujo método está nos Livros Sagrados. Mas, o que ensinou sobre a Vida, assim como o do Amor e da Liberdade devem ser experimentados e usados como sandália. Cada um terá sua experiência e ela, a julgar pelo registrado na literatura iniciática, frequentemente ocorre em situações inusitadas. Experiências são individuais e não são replicáveis. Ficam gravadas na alma. E ainda que sejamos vorazes leitores isso não assegura o sucesso na realização de uma Vida Plena. Afinal, os Livros Sagrados têm a função de conselheiros, cujo estudo não substitui a experiência pessoal, o registro e a verificação dos resultados.
“A Lei é para todos”(Liber AL, I, 34), e pode ser compreendida como filosofia de vida, como magick ou como religião dentre outros tantos. Mas sempre e sempre lembrando o imperativo Faze, isto é, Vive. A Lei é Thelema. E a Vontade só existe em Vida. A recorrente referência aos Livros Sagrados no Liber CL é no sentido de dizer que lá estão registrados as percepções e orientações dos caminhos e descaminhos de Aleister Crowley até se tornar To Mega Therion. Jornada predominantemente experimental e, nestes registros, cada vírgula é escrita com a tinta de suor experienciado do autor. Os Santos Livros são o testamento e o testemunho da jornada dele. E, portanto, um estímulo e convite, a realizarmos nossa própria jornada.
Um segundo modo de Memória Mágica “consiste em dissociar os seres que compõem a sua vida” nos chamados Corpos de Luz. Nesta condição podemos viajar, “realizando exploração sistemática daqueles mundos que são para as outras coisas materiais o que o vosso próprio Corpo de Luz é para a vossa forma material”. Nos deparamos com Portais para adentrar dimensões da Vida Eterna. Continua o Mestre, “nesta prática vós continuais, curvando vossa Vontade como um grande Arco para projetar a Flecha da vossa consciência através dos céus cada vez mais elevados e santos.” Nessa peregrinação pelos Mundos reafirmamos nossa condição de Árvore da Vida, como sugere o Mestre “que nessa prática, buscada com ardor incansável, há esta graça especial, que chegareis, como se por sorte, a estados que transcendem a própria prática, sendo da natureza daqueles Trabalhos de Pura Luz.” Quem assim experimenta, entende que a Verdadeira Vida habita em Luz. Atinge-se tal compreensão morrendo diariamente, morrendo em mente, afastando-se do velho aeon. Tem-se a unidade e identidade entre Amor e Morte. Para atingir essa percepção, sugere o Mestre, é preciso a autoinvestigação para assenhorar-se de si mesmo seja na dimensão do pensamento, da palavra ou da ação.
A Vida emana do Amor, que provém da Liberdade. Quem batalha diligentemente contra si mesmo conquista a Liberdade; quem compreende que dentro de si mora seu maior inimigo, consegue amar-se inteiramente, pois submete o amor à vontade. É capaz de Viver Plenamente e transitar pelos caminhos da Árvore da Vida, viver as experiências e não se esquecer da sua condição de Estrela. Aqui as palavras são insuficientes para traduzir o que se revela quando adentramos os Portais. Estamos diante da emanação da Luz, que os Sagrados Livros, sendo oriundos direto do Coração do Mestre, fruto do encontro e conversação com o Santo Anjo Guardião, tentaram tornar inteligível. A razão, o intelecto, a mente concreta são insuficientes para abrir os Mistérios da Luz.
As chaves da Lei estão sintetizadas nos números e fórmulas do Liber AL vel Legis; ambos tratados de modo detalhado no Liber Ararita, no Liber Trigrammaton, no Liber Cordis Cincti Serpente e no Liber Liberi. Thelema tem o número 93, três vezes 31(Lamed Alef). Estaria se referindo a Nuit, Hadit e Ra-Hoor-Khuith? Não tenho resposta. Nuit tem o número 56 e pela divisão chegamos a 0,12, como “se estivesse escrito Nuith! Hadith” Ra-Hoor-Khuith!” antes da Díada”, das dez Sefirot , thelemicamente agrupadas em Khabs e Khu, como está Liber AL, I, 8 “O Khabs está no Khu, não o Khu no Khabs”, ou seja, de Kether, Chokmah e Binah emanam as demais, o Khu. Os números e fórmulas mencionados neste momento tornam esse o parágrafo mais denso do Liber CL, cuja compreensão requer trabalho, estudo e experiência focados e não pode ser abordado adequadamente neste texto. Sendo, a instrução dos arcanos da Lei, tais fórmulas e números são lembrados, por serem a base da equação onde o Todo é também o Nada ou seja, tudo começa e retorna ao Zero.
Após instruir sobre Liberdade, Amor, Vida e Luz, o Mestre discorre sobre o que nos impede de alcançar essas bem-aventuranças revelada pela Lei, qual seja. “o Mistério da Origem do Mal”. Por Mal “nós nos referimos àquilo que está em oposição às nossas próprias vontades.” O “Mal aparece como Choronzon cujo número é 333, que em grego significa Impotência e Indolência: e a natureza de Choronron é a Dispersão e a Incoerência.”
O Mal se apresenta na forma de felicidade ilusória geradora da dispersão e inércia que desafia a força e o foco do Probacionista. No Liber AL o Mal é apresentado como Restrição à realização de nossa Verdadeira Vontade. No início o Mestre apresenta Liberdade, Amor, Vida e Luz como emanações da Lei. No último parágrafo são como quatro armas magickas “com as quais operais maravilhas pela Arte da Alta Magick, sob a Lei do Novo Aeon, cuja palavra é Thelema”: “o Bastão para a Liberdade, o Cálice para o Amor, a Espada para a Vida, o Pantáculo para a Luz”. Instrumentos operativos por meio dos quais despertamos nossas potencialidades adormecidas. A Magick é interna. Os ritos, rituais e cerimônias, as palavras, os banimentos configuram-se em procedimentos para acessar dimensões de nosso ser e nos lembrar de nosso trabalho na Grande Obra.
Insiste o Mestre que o ensinamento é para ser vivido no cotidiano, calçado tal como sandálias que nos levam a todos os lugares. De modo que somos thelemitas onde quer que estejamos, pois estaremos em busca de conquistar a Liberdade que se traduzirá em Amor sob Vontade. Ambos geram uma Vida de celebração e alegria de modo que onde chegamos levaremos nossa Luz, reafirmando nossa condição de Estrela. Somos colocados na condição de autores de nossa própria vida, deuses de nós mesmos. Mas isso exige muita responsabilidade, maturidades emocional, autoinvestigação e quietude do ego. O resto é vaidade e o tempo leva…
Amor é a lei, amor sob vontade.
Imagem ilustrativa de Sebastian Pichler obtida no Unsplash.