A Coluna de Nuvem
Este artigo é um capítulo de O Templo do Rei Salomão
Sobre a qualidade do verdadeiro buscador.
Obcecado pela quimera de sua mente, perdido no labirinto de sua imaginação, o homem vagueia pela sombria terra dos sonhos que ele mesmo criou, aceitando preguiçosamente ou rejeitando avidamente, mas sempre buscando alguma liberdade inalcançável, algum poder que o liberte desses grilhões que, em sua deliberada tolice e caprichosa ignorância, ele tem forjado em seus pensamentos.
Nada o contenta, nada o satisfaz; se não está chorando está rindo, se não está rindo está chorando; ele resmunga e aplaude, despreza e reverencia, insulta e bajula, ama e odeia, mete o dedo em cada coisa, e quando não tem mais nada para sujar e marcar com suas digitais, senta-se e chora pela lua, ou então como o cachorro na fábula vendo sua própria imagem no rio de seus sonhos, perde tudo o que tem na vã tentativa de conseguir mais.
Escravo de sua própria tirania, gritando sob seu próprio chicote, quanto mais alto ele constrói as paredes sombrias de sua prisão, mais alto ele uiva “Liberdade”: a liberdade é o que ele suplica, anseia e luta – liberdade para pular em algum pântano miasmal e chafurdar. Se ele for um lavrador, ele quer mais campos para cultivar; se for médico, mais corpos para curar; se for padre, mais almas para salvar; se for soldado, mais países para conquistar; se for advogado, mais miseráveis para enforcar. Se ele obtém “mais”, resmunga porque é “demais”; se não o obtém, continua a grunhir e a rosnar, e quanto mais rosna e grunhe, mais escravo se torna, no entanto mais livre acha que é.
Uma vez nascido, ele é cuidadosamente embrulhado nos farrapos dos Costumes, balançado no berço da Casta e amamentado pelo leite azedo do Credo. E, como acontece com o indivíduo, também acontece com a nação, o um ou os muitos, ela é ensinada a abrir caminho em um sulco estreito e, como a água em um bueiro ou em uma calha, fluir discretamente por um tempo entre dignos paralelepípedos e mui respeitável cimento e, em seguida, desaparecer tão delicadamente quanto possível no subsolo.
Às vezes há um entupimento; muita sujeira se acumula e recusa todos os métodos convencionais de remoção. Então vem uma enchente – uma revolução – por um tempo há uma bagunça desagradável, mas logo a sujeira é lavada, e mais uma vez a drenagem flui humildemente por sua calha costumeira da mesma velha maneira discreta, entre os mesmos velhos paralelepípedos, e sobre o mesmo velho cimento, até que, com o tempo, nova sujeira se espalhe e haja mais problemas e aborrecimentos. “Assim segue o meu sonho”[2], e o homem civilizado sonhando em seu bueiro naturalmente retrata Deus como uma espécie de Aquietador-de-Esgoto Onipotente que eternamente deve se arrastar com pás, conchas e ancinhos, e manter as calhas limpas e os bueiros em condições inofensivas. Então ocorre que quando as calhas ficam entupidas e os bueiros fedem, o Livre-pensador ri e diz: “Seu tolo, ‘não há tar pessoa’[3]”; e quando não o fazem, o Crente clama: “Meu pobre irmão ignorante, ‘Ele é como o fogo de um refinador e como o sabão de Fuller’[4]”.
Comparado com o homem civilizado, a água que escorre pelo bueiro, o selvagem é como uma torrente da montanha cortando seu próprio curso entre as colinas e precipitando-se descontroladamente, mas sabiamente, para o mar. Sem dúvida, do ponto de vista de um engenheiro sanitário, o bueiro é mais útil, mais racional, mais adequado do que o riacho rebelde. Mas é o utilitarismo rígido dessa moralidade de pão-com-água, essa economia de uma-camisa-por-semana, essa filosofia do leite-desnatado, essa religião do bolo-de-domingo e todas as outras economias de meio centavo de uma mediocridade gulosa, que devem ser pisoteados como se fossem as próprias baratas do inferno, antes que a Liberdade, mesmo de tipo protoplasmático, possa ser trazida à vida. É melhor ser um selvagem, um hotentote[5] de uma perna só, é melhor ser qualquer coisa do que um eunuco civilizado, uma “viuveira” de capa franzida em Upper Tooting lamentando seu “marido falecido” enquanto ela conta o meio pence que ele deixou nos bolsos das calças. Se vai haver uma inundação, que seja grande, tufônica, torrencial; não deixe que os outros passem por nós e digam: “Realmente, minha querida, que fedor insalubre!”
Ao nascer, o bebê selvagem aprende os mitos de sua tribo, que quando não corrompidos são bonitos o suficiente; a criança civilizada aprende os mitos de sua nação, que corrompidos são meramente bestiais, e são tão rígidos quanto os primeiros são elásticos. O jovem selvagem passa por uma grande prova – a luta com a Natureza; o civilizado por outra – a luta com a Razão. A um são ensinados os contos heroicos de seus antepassados, ao outro as banalidades das escolas, que com sorte estão sempre algumas décadas atrás das ideias correntes em seu nascimento.
Poucos de nós se lembram de algo que aconteceu durante os dois primeiros anos de nossa existência, e muito pouco dos dois seguintes; assim acontece que de dois a quatro anos de nossa vida estão em branco. Talvez durante esses anos de não-existência vemos as coisas como elas são; no entanto, a civilização nos toca nos lábios e falamos e esquecemos tudo sobre eles. Assim que começamos a tagarelar, começa nossa preparação para levar a vida a sério. Livros nos são dados, e a grande e larga estrada de admiração torna-se restrita a uma estreita passagem pela qual é um privilégio e uma honra passar. Se somos selvagens, isso é impertinente; se devassos – é imoral; na inocência, balbuciamos os dez mandamentos aos joelhos de nossas mães, apenas para desobedecê-los quando realmente sabemos o que eles significam. Depois vem a maturidade e suas responsabilidades, o casamento com seu único prazer e suas quarenta mil pragas, como diz Heine.
Nosso nascimento é uma questão de lei ou acaso – símbolos equivalentes para o Desconhecido; uma vez nascidos, ambiente, circunstância, posição, convenção, educação, todos, por sua vez, se apresentam para nos reivindicar e nos sufocar em seus beijos bestiais. No entanto, como os córregos e as sarjetas, os bueiros e os rios, todos nós fluímos, rugimos ou gotejamos para o mesmo mar desconhecido de onde viemos. Às vezes, a Evolução desrespeita a Ética e temos inundações, terremotos e erupções de vulcões; às vezes a Ética despreza a Evolução e nos transformamos em lagoas artificiais e Serpentinas ornamentais; no entanto, em outras ocasiões, ela acelera nosso curso e nos dá uma boa louça Doulton[6] para fluir; todos nós, no entanto, seja lágrima ou Mar Morto, mais cedo ou mais tarde voltaremos ao oceano sempre agitado; e lá seremos mais uma vez cortejados pelos brilhantes raios do Sol, aquele Deus implacável que em seu abraço feroz sempre e novamente nos atrai como uma concubina terrena para seu leito celestial, apenas mais uma vez para ser divorciado pelos ventos maliciosos e chorar através das tempestades de ar. Assim, a roda do Tempo corre pelo nascimento, morte e renascimento; e quando percebemos isso, afundamos em desespero; e pelas nossas lágrimas mais nuvens surgem para obscurecer ainda mais o nosso caminho.
De que serve então fazer qualquer coisa se somos apenas gotas de água que se espalham entre as mãos lascivas do Sol, do Vento e do Oceano? – de fato, os caminhos de Deus são inescrutáveis e inexplicáveis. Assim, o Inalcançável nos tenta, e os pequenos segmentos de Deus que vemos tornam-se para nós os mais ferozes e terríveis dos Demônios com Cara de Cão que nos seduzem para fora do caminho. Ele está sempre ao nosso lado, sussurrando, tentando, zombando, aconselhando e ajudando; Ele é que lança desespero sobre nós quando não fizemos nada de errado, e exaltação quando não fizemos nada certo; Ele é quem está sempre surgindo diante de nós como uma névoa para obscurecer nosso caminho ou ampliar nosso objetivo; ainda assim, Ele não é apenas a nuvem, mas o fogo final – se pudéssemos entendê-Lo como Ele É; Ah! meus irmãos, esta é A GRANDE OBRA.
Por que ele faz isso e aquilo, se ele pode fazer aquilo e isso? pergunta o Cético. Porque Ele assim escolheu, responde o Crente. Mas o homem que busca o coração do próprio Deus não pensa e não raciocina nada, ele sente que não há nada a fazer nem escolher, e, embora vagamente, ele vê que esses dois homens tolos, que se julgam tão sábios, possuem apenas vários pequenos segmentos de um grande círculo, e que cada um imagina seu segmento como uma circunferência perfeita em si. Logo o próprio Místico descobre que seu círculo que continha todos os segmentos deles é apenas um segmento de algum círculo maior, e que eventualmente ele está vivendo em uma grande terra de nuvens formada de miríades e miríades de pequenas esferas, que ele sente serem na Realidade um único Grande Oceano, se ele pudesse uni-las.
Cada estágio acima dele é seu objetivo Final para o presente momento. Possuindo uma pequena esfera, seu único objetivo é uni-la a outra, ou outra a ela; não a duas outras, não ao todo, mas apenas àquela Uma Outra. Por enquanto (que parece como se fosse para sempre ao iniciado), que aquela Uma Outra seja Deus e Vero Deus – o Ômega de sua busca, e que todas as outras sejam Demônios que o tentariam e seduziriam. Assim ocorre que até que você se torne Deus, o próprio Deus é na realidade o Tentador, Satanás e o Príncipe das Trevas, que, assumindo as vestes brilhantes do Tempo e do Espaço, sussurra em nossos ouvidos: “Milhões e milhões e milhões de eternidades são como nada para mim; então, como podes tu, tu pequeno cisco dançando na trave de meu olho, esperar me alcançar?” Assim no início Deus vem a nós e como a velha bruxa em “Cinderela” e espalha inúmeras lentilhas diante de nós para contar – mas comece! e logo você descobrirá que deixou a cozinha do mundo para trás e entrou no Palácio encantado “Além”.
É tudo muito difícil e complexo no início; é como um homem que, partindo por uma estrada estranha para visitar a capital de seu país, chega a uma grande montanha e contempla suas encostas quase infinitas.
“É alto demais para eu escalar”, dirá o homenzinho; “realmente é muito bonito; mas vou voltar e encontrar outra estrada”.
“Tenho certeza de que seria uma viagem muito longa”, diz um segundo; “eu não teria como pagar; também vou voltar”.
“Aqui não há guias”, diz um terceiro; “que tolice tentar um pico tão alto”.
“Não sou forte o suficiente”, diz um quarto. “Eu não tenho mapa” … “Meu negócio não me deixa” … “Minha esposa é contra”.
Assim, Deus entra no coração do homem em mil formas e tenta o homem como tentou Eva no Jardim do Éden e Abraão na terra de Moriá.
Mas o homem forte reabastecendo sua carteira e enchendo seu cantil, cinge-se com uma pele de cabra e, tomando seu cajado, inicia sua Grande viagem ao Cume da montanha de Deus; e é curioso relatar, e terrível contar, que por toda a extensão daquele caminho mágico Satanás segue atrás dele na forma de um cão-de-santo-humberto sempre tentando-o para longe do caminho certo.
Agora ele é dominado por uma grande solidão, ele está com frio, ele tem fome, ele tem sede; a linha do horizonte que ele achava que era o cume não passava de uma encosta, e dela ele vê cume após cume em sucessão infinita acima dele. Adiante ele labuta, finalmente eis o cume – não! apenas outra encosta e uma miríade mais. Mil demônios entram nele, mil pequenos cães que o destruiriam – conforto, lar, filhos, esposa; então ele diz para si mesmo: Que tolo eu sou!
Nesta fase, muitos se voltam e rastejando no vale das ilusões raciocinam como é muito mais confortável e interessante ler sobre as escaladas de montanhas do que realizá-las. Estes falam alto e batem os tambores de seu valor nos ouvidos de todos os homens.
No estágio seguinte, poucos retornam, a maioria perece no caminho de volta; pois quanto mais alto você sobe aquela grande montanha, mais difícil se torna retornar.
Suba adiante, e quando suas pernas tremerem e cederem sob você, rasteje, rasteje se estiver de quatro, cerre os dentes e diga “EU QUERO”; mas acima! e acima! e acima! E atrás de você passos incansáveis além daquele velho cão cinza sempre suspirando tentações sobre você; cheio de artimanhas, sutilezas e astúcias, sempre ávido por desviá-lo, sempre pronto para guiá-lo de volta. E neste momento cresce tanto a solidão da Montanha que sua própria companhia se torna uma tentação para você, você sente uma amizade em resistir a ele, uma esperança ardente de que ele continuará a tentá-lo, que suas tentações e suas palavras zombeteiras são melhores do que nenhuma palavra. Isso só acontece muito longe na encosta da montanha, alguns dizem não muito longe do cume; mas atenção! pois neste estágio há um grande precipício, e aqueles que procuram o cão podem talvez tropeçar e cair – e o pé desse precipício é o vale de onde eles vieram.
Daqui em diante tudo é escuridão, e não há estradas para guiar o peregrino, e o cão de caça não pode mais ser visto por causa das sombras da noite que obscurecem todas as coisas. E como se pode escrever mais sobre estes assuntos? pois aqueles que foram tão longe e voltaram, por causa da escuridão não viram nada, portanto, eles frearam suas línguas. Mas há uma velha parábola que relata como o cão que havia tentado o homem durante toda a sua perigosa jornada o devorou no Cume daquela Montanha Mística; e como aquele CÃO Antigo era de fato o próprio DEUS.
«“E o Senhor ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem para os guiar pelo caminho, e de noite numa coluna de fogo para os iluminar, para que caminhassem de dia e de noite. Nunca tirou de diante do povo a coluna de nuvem, de dia, nem a coluna de fogo, de noite”. Êxodo 13:21,22.» ↩︎
«Uma referência ao poema de Alfred Tennyson (1809-1892): “Assim segue o meu sonho, mas o que sou eu? Um infante chorando de noite / Um infante chorando pela luz / E sem linguagem senão um choro”. » ↩︎
«No original a frase é “there is no sich a person” (ênfase nossa), uma piada com uma frase de uma personagem de Charles John Huffam Dickens (1812-1870) que fala errado.» ↩︎
«No original é feito um trocadilho com Fuller – o nome de um dos autores do Templo do Rei Salomão – e fuller – alguém que limpa e passa roupas. A referência bíblica em tradução moderna é “Mas quem suportará o dia da sua vinda? E quem subsistirá, quando ele aparecer? Porque ele será como o fogo do ourives e como o sabão dos lavandeiros” – Malaquias 3:2.» ↩︎
«Termo étnico que era usado para se referir aos cóis, um grupo de nativos do sudoeste da África.» ↩︎
«Uma marca de pias e vasos sanitários.» ↩︎
Capítulo traduzido por Alan Willms em dezembro de 2022. Ilustração de uma pintura de Benjamin West.