O Acólito

Este artigo é um capítulo de O Templo do Rei Salomão

O início da jornada de Frater Perdurabo.

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O Acólito

Antes de tratarmos dos acontecimentos da Grande Jornada de Frater P., durante a qual por seis anos ele viajou pela face do globo em busca do conhecimento místico de todas as nações, é necessário relatar aqui, mesmo que brevemente, as circunstâncias que permitiram que ele entrasse em comunicação com a Ordem da A∴A∴.

Nascido de uma família antiga, mas poucos dias após o quinquagésimo sexto Equinócio antes do Equinócio dos Deuses, ele foi criado e educado na fé de Cristo, conforme ensinada por uma das seitas mais rígidas das muitas facções da Igreja Cristã, e mal aprendeu a balbuciar as sílabas mais simples da infância quando começou seu martírio.

Desde a primeira infância, ele lutou na escuridão fria de seu entorno até atingir a pré-adolescência, e à medida que crescia e prosperava, o mesmo acontecia com a iniquidade daquele tratamento antinatural, que com mão pródiga e cruel, era esbanjado sobre ele. Então chegou a adolescência, e com ela o nome de Deus se tornou uma maldição, e a forma de Jesus surgiu na escuridão de Gólgota, um horror gélido e hediondo que, como um vampiro, sugou a alegria de sua infância; quando de repente, numa noite de verão, ele se separou dos carniçais que o atormentavam, deixando de lado as convenções sórdidas da vida, desafiando as leis de sua terra, duvidando da religião decadente de sua infância, ele quebrou, como galhos podres, o convencionalismos da civilização estéril e hipócrita em que ele foi criado, e buscou refúgio por um tempo no país selvagem e belo que se encontra emaranhado como uma cabeça de cabelo despenteado ao norte e noroeste da Inglaterra. Aqui ele aprendeu com os ventos sussurrantes e com as estrelas sonhadoras que a vida não era de todo uma maldição, e que toda noite morre nos braços da aurora.

Sua liberdade teve curta duração; no entanto, embora ele tenha sido arrastado de volta para a prisão de onde ele havia escapado, ele descobriu sua própria força, uma nova vida fluiu como um grande mar dançando com espuma sobre ele, e o embriagou com o vinho tinto da Liberdade e da Revolta – sua manopla da juventude havia sido derrubada, doravante ele lutaria por sua hombridade, sim! e pela hombridade do Mundo!

Então o toque da trombeta soou; a batalha havia realmente começado! Esforçando-se para ficar de pé, arrancou de si o sudário de uma fé corrompida como se fosse a mortalha podre de uma múmia. Com os lábios trêmulos e a voz embargada de indignação pela injustiça do mundo, ele amaldiçoou o nome de Cristo e caminhou em busca da porta do Inferno e soltou os demônios do abismo, para que a humanidade ainda aprendesse que a compaixão não estava morta.

No entanto, a loucura passa, como uma nuvem escura antes do sopro da aurora que desperta; consciente de sua própria retidão, da hombridade que era sua, de sua própria força e da justiça de seu propósito, e repleto das ambições transbordantes da juventude, nós o encontramos inconscientemente embainhando sua espada vermelho-sangue e soprando chamas e fumaça do tripé da vida, lançando diante da imagem velada e terrível do Desconhecido as flechas de sua razão, e buscando diligentemente tanto o presságio quanto o sinal nos volumes empoeirados do passado e na antiga sabedoria de dias há muito esquecidos.

Profundamente versado em poesia, filosofia e ciência, com habilidades naturais além do comum, e já um poeta de brilhante promessa; ele subitamente sai da escuridão como uma estrela profética selvagem, e derrubando as carteiras e os bancos dos escolásticos, e lançando sua papila pedagógica de seus lábios, escapa dos claustros abafados do aprendizado mofado, e dos colégios de dogmática dialética, e procura o que ainda não podia encontrar na liberdade que em seu ardor juvenil lhe parece viver a apenas duzentos ou trezentos metros além das torres e frontões daquela cidade de pedantes inflexíveis que havia sido sua escola, sua casa e sua prisão.

Então ocorreu o grande despertar. É curioso dizer, foi por volta da meia-noite do último dia do ano, quando o velho se afasta do novo, que ele estava cavalgando sozinho, envolto no manto escuro de pensamentos indizíveis. Um sino distante soou no último quarto de hora do ano moribundo, e a neve que jazia fina e quebradiça na estrada estava sendo apanhada aqui e ali pelos sopros de vento gelado cortante que vinha como uma serpente através das esquinas e das árvores, rodopiando como um espectro no frio e sob o luar prateado. Mas obscuros eram seus pensamentos, pois o mundo havia falhado com ele. Ele buscava a liberdade, mas não aquela liberdade que conquistara. O sangue parecia escorrer de suas pálpebras e pingar, gota a gota, sobre a neve branca, escrevendo em sua superfície pura o nome de Cristo. Grandes morcegos esvoaçavam por ele, e abutres cujas cabeças calvas estavam coaguladas com sangue podre. “Ah! o mundo, o mundo… o fracasso do mundo”. E então uma luz âmbar surgiu ao seu redor, a tapeçaria temerosa do pensamento torturante foi despedaçada, as vozes de muitos anjos cantaram para ele. “Mestre! Mestre!” exclamou: “Encontrei-Te… Ó Cristo de prata…”

Então tudo era o Nada… nada… nada… nada; e seu cavalo o carregou loucamente noite adentro.

Assim, ele partiu em sua busca mística em direção ao objetivo que ele havia visto e que parecia tão próximo; e, no entanto, como veremos, provou estar tão distante.

No primeiro volume dos diários, o encontramos mergulhado no estudo dos filósofos alquimistas. Debruçado sobre Paracelso[1], Benedictus Figulus[2], Eugenius «Philalethes»[3] e Eirenæus Philalethes[4], ele buscava o Azoth Alquímico, o Catholicon, o Esperma do Mundo, aquela Medicina Universal na qual estão contidos todos os outros medicamentos e o primeiro princípio de todas as substâncias. Em agonia e alegria, ele procurou fixar o volátil e transmutar a raça humana sem forma no filho dual da mística Cruz de Luz, ou seja, resolver o problema do Homem Perfeito. Fludd[5], «São» Boaventura[6], Lúlio[7], Valentino[8], Flamel[9], Geber[10], Plotino[11], Amônio[12], Jâmblico[13] e Dionísio[14] foram todos devorados com a avidez e a ganância que só a juventude possui; não havia descanso aqui –

“‘Agora, mestre, descanse um pouco!’ – mas ele não!
        (Com cuidado redobrado,
E o segundo passo à frente, um caminho de tirar o fôlego!)
       Nem um pouco perturbado,
Volta aos estudos, mais renovado que no início,
       Feroz como um dragão,
Ele (alma-hidróptica com uma sede sagrada)
       Bebeu direto do jarro”[15].

Mergulhando nas tenebræ[16] da física transcendental, ele buscava a grande realização e, sem saber, na exuberância de seu entusiasmo, deixou a larga estrada do vale e partiu pela trilha da montanha em direção ao cume derradeiro que brilha com a pedra dos Sábios, e cujo segredo está na abertura do “Olho Fechado” – a consumação da Escuridão.

Aquele que dispensa Paracelso com um clister de dois centavos, ou Raimundo Lúlio com uma reimpressão de seis centavos, não é um tolo, não, não, não é nada tão exaltado; mas apenas um piolho com cérebro de coelho, que, gabando-se de estar rastejando na barba grisalha de Haeckel[17] e nas mechas escassas de Spencer[18], suga o sangue pseudocientífico dos folhetos de propaganda de nossas revistas mensais e declara tudo fora do lixo racional de um Pediculus[19] como algo ridículo e impossível.

O Alquimista sabia bem a diferença entre o fogão de cozinha e a fornalha heraclitiana; e entre a água da banheira e “a água que não molha as mãos”. É verdade que muito “disparate” foi escrito a respeito de bálsamos, elixires e sangues, que, no entanto, para o mero principiante da alquimia pode ser separado dos trabalhos sérios tão facilmente quanto um estudante «de medicina» da “Bart”[20] pode separar panfletos de restauração de cabelos e removedores de cravos de palestras e ensaios de Lister e Müller.

Assim, aos vinte e dois anos de idade, P. partiu freneticamente na Busca pela Pedra Filosofal.

Vīsitā Interiōra Terræ Rēctificandō Inveniēs Occultam Lapidem Vēram Medicīnam[21]; este de fato é o verdadeiro remédio das almas; e assim P. buscou o solvente universal VITRIOLUM, e equiparou as sete letras em VITRIOL, SULPHUR e MERCURY[22] com os poderes alquímicos dos sete planetas; precipitando o SALT dos quatro elementos – Subtīlis, Aqua, Lūx, Terra[23]; e misturando Flātus, Ignis, Aqua e Terra[24], feriu-os com a cruz do Mistério Oculto e gritou: “Fīat Lūx[25]!”

A juventude avança com passos apressados, e no verão daquele ano – 1898 – encontramos P. consultando os místicos profundamente, e bebendo do cálice branco dos mistérios com São João «da Cruz»[26], Boehme[27], Tauler[28], Eckart[29], Molinos[30], Levi[31] e Blake[32]:

“Rintrah ruge e agita seus fogos no ar carregado,
Nuvens famintas balançam sobre as profundezas”[33].

Insaciável, ele seguiu ainda mais longe, faminto pelo conhecimento das coisas lá fora; e em sua luta pelo milhão ele perdeu a unidade, e acumula caos na escuridão externa da Ilusão. Dos céus sem nuvens do Misticismo ele desce para a escuridão infernal em pensamentos alados: “Os membros de fogo, os cabelos flamejantes, disparados como o sol poente no mar ocidental”, e o encontramos agora nos reinos goéticos da feitiçaria, da bruxaria e da necromancia infernal. Os morcegos passam voando por nós enquanto ouvimos seus gritos frenéticos por luz e conhecimento: “O Guia Espiritual” e “O Peregrino Querubínico” são postos de lado a favor de “O Arbatel” e “As Sete Orações Misteriosas”. Uma virada apressada de muitas páginas, a queima de muitas velas, e então – a Chave de Salomão é guardada por um tempo, com os Grimórios e os rituais, os talismãs e os pergaminhos virgens; os antigos livros da Cabala estão abertos diante dele; um lampejo de fogo brilhante, como um peixe prateado saltando das águas negras do mar para a luz das estrelas, o desorienta e desaparece; pois ele abriu “O Livro do Mistério Oculto” e leu:

“Antes que houvesse equilíbrio, semblante não contemplava semblante”.

As palavras: “Yehi Aour” tremiam em seus lábios; o próprio caos de seu ser pareceu de repente tomar forma – vasto e terrível; mas o tempo não havia sido cumprido, e o sopro da criação de um novo mundo os pegou de sua boca entreaberta e os levou de volta para a escuridão de onde eles quase vibraram[34].

Do meio do verão até o início do outono, os diários são silenciosos, exceto por uma anotação, “conheci um certo Sr. B___ um alquimista notável[35]”  que, embora sem nenhuma importância em si, estava destinado a levar a outro encontro que mudou todo o curso do progresso de P., e acelerou seu passo em direção àquele Templo, cuja terra negra das fundações ele, até o presente, havia juntado em montes caóticos ao seu redor.

O imenso depósito de conhecimento cabalístico de Knorr von Rosenroth[36] parece ter mantido P. totalmente ocupado até o equinócio de outono, quando B___[37], o alquimista notável, o apresentou a um Sr. C___[38] (depois, como veremos, Frater V∴N∴ da Ordem da Aurora Dourada). Esta reunião revelou-se da maior importância, como será apresentado no capítulo seguinte. Por intermédio de C___, P. por enquanto havia posto de lado von Rosenroth, e agora estava mergulhado no “Livro da Magia Sagrada de Abra-Melin, o Mago”. Uma época de transição se aproximava, um renascimento espiritual estava prestes a acontecer, não é de admirar que encontremos P. como Santo Agostinho lamentando sua busca externa e chorando com ele:

“Senhor, vaguei como uma ovelha desgarrada, procurando-Te fora com ansioso Raciocínio, enquanto Tu estavas dentro de mim. Me cansei muito procurando-Te fora, e ainda assim Tu tens Tua habitação dentro de mim, se Te desejar e ansiar por Ti. Andei por Ruas e Praças da Cidade deste Mundo procurando-Te; e não Te encontrei, porque em vão procurei fora Aquele que estava dentro de mim”.



  1. «Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541) foi um alquimista, médico, teólogo e filósofo suíço.» ↩︎

  2. «Benedikt Heffner (1567-?) foi um alquimista, pastor e poeta alemão, que desapareceu em 1619.» ↩︎

  3. «Thomas Vaughan (1621-1666) foi um alquimista, clérigo e filósofo e galês.» ↩︎

  4. «George Starkey (1628-1665) foi um alquimista, médico e escritor norte-americano.» ↩︎

  5. «Robert Fludd (1574-1637) foi um alquimista, médico, astrólogo e matemático inglês.» ↩︎

  6. «Giovanni di Fidanza (1221-1274) foi um bispo franciscano italiano, também cardeal, teólogo e filósofo.» ↩︎

  7. «Ramon Llull (1232-1316) foi um escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo, beatificado pela Igreja Católica.» ↩︎

  8. «Valentinus (100-180) foi um teólogo gnóstico do proto-cristianismo.» ↩︎

  9. «Nicolas Flamel (1330-1418) foi um alquimista, escriba e vendedor de manuscritos francês.» ↩︎

  10. «Abū Mūsā Jābir ibn Ḥayyān (?-816) foi um alquimista do oriente médio, supostamente autor de uma grande quantidade de escritos sobre alquimia, química, magia e filosofia conhecidos como o corpus Jabiriano.» ↩︎

  11. «Plotino (204-270) foi um importante filósofo neo-platônico de língua grega, nascido no Egito.» ↩︎

  12. «Amônio Sacas (175-240) foi um filósofo neoplatônico romano, filho de cristãos.» ↩︎

  13. «Iamblichus Chalcidensis (245-325) foi um filósofo neoplatônico assírio.» ↩︎

  14. «Há pelo menos cinco filósofos clássicos com o nome de Dionísio, não se sabe ao certo a qual deles Crowley se refere.» ↩︎

  15. «Poema “O Funeral de um Gramático” de Robert Browning (1812-1889).» ↩︎

  16. «“Sombras” em latim.» ↩︎

  17. «Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919) foi um filósofo, biólogo, naturalista e médico alemão.» ↩︎

  18. «Herbert Spencer (1820-1903) foi um filósofo, biólogo e antropólogo inglês.» ↩︎

  19. «Pediculus é um gênero de piolhos. » ↩︎

  20. «“Barts” é o apelido da Escola de Medicina e Odontologia de Londres, formada por diversos colégios e hospitais remetendo ao ano de 1123.» ↩︎

  21. «Latim para “Visita o interior da terra e retificando encontrarás a pedra oculta, a verdadeira medicina”.» ↩︎

  22. «Traduzindo do inglês, seriam Vitríolo, Enxofre e Mercúrio, respectivamente.» ↩︎

  23. «Latim para Sutil, Água, Luz e Terra, respectivamente.» ↩︎

  24. «Latim para Sopro, Fogo, Água e Terra, respectivamente.» ↩︎

  25. «Latim para “Que haja luz”.» ↩︎

  26. «Juan de Yepes y Álvarez (1542-1591) foi um místico, sacerdote e frade carmelita espanhol.» ↩︎

  27. «Jakob Böhme (1575-1624) foi um místico e filósofo luterano alemão.» ↩︎

  28. «Johann Tauler (1300-1361) foi um místico e frade dominicano alemão.» ↩︎

  29. «Eckhart de Hochheim (1260-1328) foi um místico, filósofo e frade dominicano.» ↩︎

  30. «Miguel de Molinos (1628-1696) foi um místico e sacerdote católico espanhol.» ↩︎

  31. «Éliphas Lévi foi o pseudônimo de Alphonse Louis Constant (1810-1875), um místico, mago cerimonial e ocultista francês.» ↩︎

  32. «William Blake (1757-1827) foi um poeta, tipógrafo e pintor inglês.» ↩︎

  33. «Trecho de O Casamento do Céu e do Inferno de William Blake » ↩︎

  34. Naquela época, P. levava uma vida de eremita em uma geleira suíça com alguém que, embora não soubesse disso na época, de vez em quando destinava-se a trazer-lhe sabedoria da Grande Fraternidade Branca. Este nós encontraremos novamente sob as iniciais de D.A. ↩︎

  35. Depois conhecido como Frater C.S. ↩︎

  36. «“A Kabbalah Revelada” de Knorr von Rosenroth.» ↩︎

  37. «Julian Levett Baker (1873-1958), um químico inglês, conhecido na Aurora Dourada como Frater Causa Scientiæ.» ↩︎

  38. «George Cecil Jones (1873-1960), um químico inglês, conhecido na Ordem como Frater Volo Noscere.» ↩︎


Capítulo traduzido por Alan Willms em dezembro de 2022. Ilustração de Kasper Rasmussen no Unsplash.

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