Prefácio

Este artigo é um capítulo de O Templo do Rei Salomão

O valor das experiências religiosas frente ao racionalismo.

.
Leia em 27 min.
Banner

Prefácio

A Questão

Avē̆!

Deve ter havido um momento na vida de todo estudante dos Mistérios em que ele fez uma pausa enquanto lia a obra ou a biografia de algum Místico famoso, um momento de perplexidade em que, confuso, ele se voltou para si mesmo e se perguntou: “Será que esta pessoa está me dizendo a verdade?”

Isso nos impressiona ainda mais quando nos voltamos para qualquer trabalho que comenta sobre o Misticismo, como Essay on the Bases of the Mystic Knowledge de Récéjac[1] ou As Variedades da Experiência Religiosa de William James. Na verdade, isso é tão pronunciado que a menos que sejamos mais do que comumente céticos em relação às teorias prolixas que tentam explicar esses enunciados igualmente prolixos, somos obrigados a dar as mãos à grande escola do materialismo médico, que é quase primordial no momento presente, e rejeitar todos aqueles que tiveram um vislumbre de algo que não vemos como détraqués[2], degenerados, neuropatas, psicopatas, hipocondríacos e epilépticos.

Bem, mesmo se fizermos isso, esses termos explicam muito pouco e, na maioria dos casos, especialmente quando aplicados a estados místicos, não significam absolutamente nada; não obstante, constituem uma excelente válvula de escape da qual o ignorante pode rastejar quando se depara com uma dificuldade que não tem energia ou sagacidade para superar.

É verdade, o caos absoluto entre todos os sistemas de magia e misticismo que têm prevalecido no Ocidente durante os últimos dois mil anos é responsável em partes, se não totalmente, pela maneira não-crítica como esses sistemas têm sido tratados por mentes doutra forma críticas.

Até mesmo hoje, embora muitos milhares de anos depois de terem sido escritos pela primeira vez, encontramos uma maior simplicidade e verdade nos antigos rituais e hinos do Egito e da Assíria do que no extraordinário emaranhado de sistemas que ganharam vida durante os primeiros quinhentos anos da era cristã. E no Oriente, desde a mais remota antiguidade até os dias atuais, os sistemas científicos de iluminismo têm sido postos em prática diária pelos mais altos aos mais baixos naquela terra; embora, como consideramos, bastante corrompidos por um sacerdócio ignorante, por superstições absurdas e por uma ciência que decaiu em uma revelação divina em vez de se elevar a uma arte sublime.

No Ocidente, há cerca de mil e quinhentos anos o cristianismo tem influenciado as mentes dos homens dos mares árticos aos do Mediterrâneo. No início, era apenas uma das muitas pequenas crenças excrescentes, que surgiram como fungos entre as esplêndidas ruínas das religiões do Egito, Babilônia e Grécia, não demorou muito (por causa de seus princípios bélicos e da natureza profundamente mágica de seus ritos[3]) para que levantasse sua cabeça e então seus braços acima dos ombros de seus irmãos mais fracos; e quando finalmente em posição de atacar, intimidou todos os competidores tão completamente que os poucos que interiormente permaneceram fora da Igreja, para salvar as peles machucadas das religiões que eles ainda estimavam, eram, para sua autopreservação, obrigados a vesti-las no ouropel da verbosidade, em valores selvagens e símbolos extravagantes e cifras; o resultado é que caos foi amontoado sobre caos, até que, finalmente, todo o sentido foi envolto em um obscurantismo truculento. Ainda assim, por aquele que tem olhos será visto que através de toda essa escuridão brilhava o encanto de uma grande e bela Verdade.

Portanto, não é de se admirar que, nestes dias atuais de superficialismos intelectuais, quase qualquer pessoa que tenha estudado, ou mesmo ouvido falar, das teorias de qualquer ninguém notório do momento, imediatamente relega ao museu ou ao cesto de lixo estas teorias e sistemas, que já foram o próprio sangue do mundo, e que na verdade são tão quietos que poucos suspeitam disso.

A Verdade é a Verdade; e a Verdade de ontem é a Verdade de hoje, e a Verdade de hoje é a Verdade de amanhã. Portanto, nossa busca é encontrar a Verdade e extrair a amêndoa da casca, o texto do comentário.

Começar do início pareceria o curso adequado a se adotar; mas se começarmos a peneirar o cascalho da areia no ano de 10.000 A.C, há pouca probabilidade de chegarmos a uma distância mensurável dos dias atuais. Porém, felizmente para nós, não precisamos começar com nenhum período anterior ao nosso, ou sobre qualquer assunto fora de nossos verdadeiros selfs. Mas precisamos aprender duas coisas, se quisermos nos tornar inteligíveis para os outros, e essas são, em primeiro lugar, um alfabeto e, em segundo lugar, uma linguagem pela qual expressar nossos pensamentos; pois sem algum sistema definido de expressão, nosso único caminho é permanecer em silêncio, para que não haja mais confusão no caos já desconcertante.

Será dito imediatamente por qualquer um que leu até aqui: “Aposto tudo o que você quiser que o escritor deste livro será o primeiro a ofender esta regra!” e com toda a humildade, imediatamente nos declaramos culpados por esta ofensa. Infelizmente é assim, e a princípio precisa ser assim; no entanto, se no final conseguirmos criar apenas a primeira letra do novo Alfabeto, não consideraremos que isso foi um fracasso; longe disso, pois nos regozijaremos que, tendo sido ultrapassado o limiar emaranhado, a meta, embora distante, esteja finalmente à vista.

Em um hospital costuma-se manter um prontuário de cada paciente, no qual se pode ver o progresso exato, desde o início, do caso médico em questão. Por meio dele, o médico pode avaliar diariamente o crescimento ou declínio da doença contra a qual o paciente está lutando. Digamos que na quinta-feira a temperatura do paciente está em 37,8°; à noite, ele recebe uma xícara de caldo de carne (o paciente até o momento se mantinha estritamente em uma dieta láctea); na manhã seguinte o médico descobre que sua temperatura subiu para 38,9°, e imediatamente conclui que a febre ainda não baixou o suficiente para que uma mudança definitiva de dieta seja adotada e, “derrubando” o caldo de carne, a temperatura cai.

Assim, se ele for um médico digno, ele estudará seu paciente, nunca negligenciando os detalhes aparentemente sem importância que podem ajudá-lo a realizar seu objetivo, a saber, a recuperação e a saúde.

Este sistema de tabulação minuciosa não se aplica somente a casos de doenças e enfermidades, como também a todos os ramos da vida saudável, sob o nome de “negócios”; o melhor homem de negócios é aquele que reduz sua ocupação especial na vida de “confusão” a “ciência”.

No Ocidente, a religião nunca saiu sozinha do caos; e chegou a hora, embora já seja tarde, para que os adeptos surjam sem medo ou tremor de fazer pela Fé o que Copérnico, Kepler e Newton fizeram pelo que é vulgarmente conhecido como “Ciência”. E assim como a Fé, envelhecendo antes da hora, reprimiu a Ciência com uma mão cruel, então vamos agora, enquanto a Ciência ainda é jovem, dar um passo à frente e reivindicar nossos direitos, para evitar que, se pararmos, também encontremos o filho da Manhã mais uma vez estrangulado na boca de uma segunda Noite.

Agora, mesmo para aqueles que ainda são meros estudantes dos mistérios, deve ter se tornado aparente que há momentos na vida de outras pessoas, se não na própria vida deles, que trazem consigo um enorme senso de autoridade e iluminação interiores; momentos que criaram épocas em nossas vidas e que, quando se foram, se destacam como picos luminosos ao luar do passado. É triste dizer, mas eles vêm raramente, tão raramente que muitas vezes são vistos como visitas milagrosas de algum poder muito superior, além e fora de nós. Mas quando eles vêm, as maiores alegrias da terra murcham diante deles como folhas secas no fogo, e desaparecem do firmamento de nossas mentes como as estrelas da noite antes do sol nascente.

Agora, se fosse possível induzir esses estados de êxtase ou alucinação, ou como quisermos chamá-los, à vontade, por assim dizer, teríamos realizado o que uma vez foi chamado, e que ainda é conhecido como, a Grande Obra, e teríamos descoberto a Pedra dos Sábios, aquele solvente universal. O sofrimento cessaria e daria lugar à alegria, e a alegria a uma bem-aventurança totalmente inimaginável para todos aqueles que ainda não a experimentaram.

São João da Cruz, escrevendo sobre as “intuições” pelas quais Deus chega à alma, diz:

“Elas nos enriquecem maravilhosamente. Uma só delas pode ser suficiente para abolir de um só golpe certas imperfeições das quais a alma durante toda a sua vida tentou em vão se livrar, e adorná-la com virtudes e carregá-la de dons sobrenaturais. Um único destes consolos inebriantes pode recompensá-lo por todos os trabalhos sofridos em sua vida – mesmo que fossem inúmeros. Investida de uma coragem invencível, cheia de um desejo apaixonado de sofrer por seu Deus, a alma é então tomada por um tormento estranho – o de não conseguir sofrer o suficiente.”[4]

Nos velhos tempos, quando apenas uma pequena parte do globo era conhecida pelo ser humano civilizado, o explorador e o viajante voltavam para sua casa com histórias estranhas e fantásticas de homens peludos de braços longos, monstros impossíveis e países de maravilhas como se fossem de contos de fadas. Mas aquele que viaja agora e por acaso vê um gorila, ou uma girafa, ou por acaso um vulcão, esquece-se de mencioná-los até mesmo em suas correspondências mais casuais! E por quê? Porque ele aprendeu a entender que essas coisas existem. Ele deu nome a elas e, ao fazê-lo, elas deixaram de ser objetos de interesse para ele. Em um aspecto, ele dá à luz uma grande verdade, que imediatamente cancela dando à luz uma grande falsidade; pois sua reverência, como seu desdém, depende apenas do valor de um nome.

O adepto, entretanto, não é assim; pois, assim como o zoólogo não perde o interesse pela raça símia porque aprendeu a chamar um bípede cabeludo de braços compridos de gorila; assim também ele, ao aprender a se explicar com clareza e a transmitir a imagem de seus pensamentos com exatidão ao cérebro de outra pessoa, está separando o joio do trigo, a Verdade do Símbolo da Verdade.

Agora, quando São João da Cruz nos diz que uma única visão de Deus pode nos recompensar por todos os trabalhos desta vida, estamos em perfeita liberdade, nestes dias de tolerância, para gritar “Sim!” ou “Não!” Podemos ir mais longe: podemos exaltar São João à posição de um segundo George Washington, ou podemos chamá-lo de “um maldito mentiroso!” ou, novamente, se não quisermos ser considerados rudes, um “neuropata” ou algum outro sinônimo igualmente amigável. Mas nenhuma dessas expressões explica muito para nós; todas elas são igualmente vagas – não (é curioso relacionar!), até mesmo místicas – e como tal, pertencem ao Reino de Zoroastro, aquele reino da fé pura: ou seja, fé em São João, ou fé em algo oposto a São João.

Mas agora vamos emprestar de Pirro – o Cético, o perspicaz homem da ciência – aquela palavra “Por quê?” e aplicá-la ao nosso “Sim” e ao nosso “Não”, assim como um médico questiona a si mesmo e ao paciente sobre a doença; e muito em breve descobriremos que estamos sendo levados a uma conclusão lógica, ou pelo menos a um ponto a partir do qual tal conclusão se torna possível[5]. E deste lugar o trabalho do lavrador não deve ser condenado até que chegue à Estação em que a árvore que ele plantou dê frutos; então por seu fruto será conhecido e por seu fruto será julgado[6].

Esta aplicação da palavra “Por quê” é o resumo do que tem sido chamado de Iluminismo Científico[7], ou a ciência de aprender como não dizer “Sim” até saber que é Sim, e como não dizer “Não” até saber que é Não. É a palavra mais importante de nossas vidas, a pedra angular do Templo, a pedra angular do arco, o mangual que separa o joio do grão, a peneira pela qual a Falsidade passa e na qual a Verdade permanece. É, de fato, o equilíbrio da balança, o gnômon do relógio de sol; que, se aprendermos a ler bem, nos dirá a que hora de nossas vidas chegamos.

Por sua falta, reinos entraram em decadência, e através dela, impérios foram criados; e seu temido inimigo é necessariamente o “dogma”.

Um homem começa a dizer “Sim” sem a pergunta “Por quê?” se torna diretamente dogmático, um potencial mentiroso, se não de fato um. E é por esta razão que nos opomos tão amargamente, e usamos palavras tão contundentes, contra o racionalista dos dias de hoje[8] quando o atacamos. Pois vemos que ele está fazendo por Darwin, Huxley e Spencer o que o cristão primitivo fez por Jesus, Pedro e Paulo; ou seja, ele, já os tendo idealizado, está agora no ato de deificá-los. Em breve, se não for atacada, a palavra deles se tornará A Palavra, e no lugar do “Livro do Gênesis” teremos “A Origem das Espécies”, e no lugar do cristão aceitando como Verdade a palavra de Jesus teremos o racionalista aceitando como Verdade a palavra de Darwin.

Mas e quanto ao verdadeiro homem da ciência? – você pergunta; aqueles homens que duvidam e trabalham silenciosamente em seus laboratórios, não aceitando nenhuma teoria, por mais maravilhosa que seja, até que a teoria dê origem a fatos. Nós concordamos – mas e quanto aos Magī?  – respondemos; cujos poucos fragmentos de sua sabedoria, que escaparam das chamas cristãs, ficarão como maravilhas aos olhos de todos os homens. Foram os cristãos que mataram a magia de Cristo, e assim serão, se eles tiverem permissão de viver, os Racionalistas que destruirão a magia de Darwin; de modo que, daqui a quatrocentos anos, talvez algum discípulo de Lamarck seja despedaçado nas salas da Royal Society pelos seguidores de Haeckel, assim como Hipácia, aquela discípula de Platão, foi despedaçada na Igreja de Cristo pelos seguidores de São João.

Não temos nada a dizer contra os homens da ciência, não temos nada a dizer contra os grandes Místicos – saudações aos dois! Mas os seus seguidores, que aceitaram as doutrinas de um ou de outro como um dogma, aqui declaramos abertamente como uma praga, uma maldição e uma pestilência para a humanidade.

Por que presumir que apenas um sistema de ideias pode ser verdadeiro? E quando você tiver respondido a essa pergunta, haverá tempo suficiente para assumir que todos os outros sistemas estão errados. Comece com uma folha em branco e escreva de forma limpa e bonita nela, para que outras pessoas possam lê-la corretamente; não comece com algum palimpsesto antigo, e então rabisque por todo o lado descuidadamente, pois então, de fato, outros virão que certamente o lerão da maneira errada.

Se Osíris, Cristo e Maomé eram loucos, então, de fato, a loucura é a chave para a porta do Templo. No entanto, se eles foram chamados de loucos apenas por serem sábios além da sanidade, então pergunte a si mesmo por que as doutrinas deles trouxeram com eles os crimes de intolerância e os horrores da loucura? E nossa resposta é que embora eles amassem a Verdade e se casassem com a Verdade, eles não poderiam explicar a Verdade; portanto, seus discípulos tiveram que aceitar os símbolos da Verdade pela Verdade, sem a possibilidade de perguntar “Por quê?” ou então rejeitar a Verdade completamente. Assim aconteceu que quanto maior o Mestre, menos ele foi capaz de se explicar, e quanto mais obscuras suas explicações, mais sombrias se tornavam as mentes de seus seguidores. Foi a velha história da luz que cegou as trevas. Você pode ensinar um bosquímano a somar um a um, e ele pode, depois de algum ensinamento, compreender a ideia de “dois”; mas não tente lhe ensinar cálculo diferencial! O primeiro pode ser comparado ao estudo das ciências físicas, o segundo ao estudo das ciências mentais; portanto, devemos perseverar ainda mais para resolver corretamente as diferenças aparentemente mais absurdas e infinitesimais, e talvez um dia, quando tivermos aprendido como somar uma unidade a outra unidade, um milhão e a milionésima parte de uma unidade serão nossos.

Concluiremos agora esta parte de nosso prefácio com duas longas citações do excelente livro do professor James; a primeiro das quais, ligeiramente resumida, é a seguinte:

“É pelo terror e a beleza dos fenômenos, a ‘promessa’ do amanhecer e do arco-íris, a ‘voz’ do trovão, a ‘suavidade’ da chuva de verão, a ‘sublimidade’ das estrelas, e não a leis físicas que essas coisas seguem, pelas quais a mente religiosa ainda continua a ser mais impressionada; e assim como antigamente o homem devoto diz que na solidão de seu quarto ou dos campos ele ainda sente a presença divina, e que sacrifícios para esta realidade invisível o enchem de segurança e paz.

Puro anacronismo! Diz a teoria da sobrevivência; – anacronismo para o qual a desantropomorfização da imaginação é o remédio necessário. Quanto menos misturamos o privado com o cósmico, mais habitamos em termos universais e impessoais, nos tornamos herdeiros mais verdadeiros da Ciência.

Apesar do apelo que essa impessoalidade da atitude científica exerce sobre uma certa magnanimidade de temperamento, acredito que seja superficial, e agora posso expor minha razão em relativamente poucas palavras. Essa razão é que, desde que lidemos com o cósmico e o geral, lidamos apenas com os símbolos da realidade, mas assim que lidamos com os fenômenos privados e pessoais como tais, lidamos com realidades no sentido mais completo do termo. Acho que posso facilmente esclarecer o que quero dizer com essas palavras.

O mundo de nossa experiência consiste em todos os momentos de duas partes, uma parte objetiva e uma parte subjetiva, das quais a primeira pode ser incalculavelmente mais extensa do que a última, e ainda a última nunca pode ser omitida ou suprimida. A parte objetiva é a soma total de tudo em qualquer momento que possamos estar pensando, a parte subjetiva é o ‘estado’ interno em que o pensamento acontece. O que pensamos pode ser enorme – os tempos e espaços cósmicos, por exemplo – enquanto o estado interior pode ser a atividade mais fugaz e mesquinha da mente. No entanto, os objetos cósmicos, na medida em que a experiência os produz, são apenas imagens ideais de algo cuja existência não possuímos interiormente, mas apenas apontamos para fora, enquanto o estado interior é a nossa própria experiência; sua realidade e a de nossa experiência são uma só. Um campo consciente mais seu objeto como sentido ou pensado mais uma atitude em relação ao objeto mais o sentido de um self a quem pertence a atitude – um tal pedaço concreto de experiência pessoal pode ser um pouco pequeno, mas é sólido enquanto durar; não é vazio, não é um mero elemento abstrato da experiência, como o ‘objeto’ é quando tomado sozinho. É um fato completo, embora seja um fato insignificante; é do tipo ao qual todas as realidades devem pertencer; as correntes motoras do mundo funcionam da mesma forma; está na linha conectando eventos reais com eventos reais. Aquela sensação insondável que cada um de nós tem da pitada de seu destino individual quando sente que está rolando na roda da fortuna pode ser menosprezada por seu egoísmo, pode ser ridicularizada como não científica, mas é a única coisa que preenche a medida de nossa realidade concreta, e qualquer suposta existência que carecesse de tal sentimento, ou seu análogo, seria um pedaço de realidade apenas pela metade.

Se isso for verdade, é um absurdo para a ciência dizer que os elementos egoístas da experiência devem ser suprimidos. O eixo da realidade passa unicamente pelos lugares egoístas – eles estão amarrados nele como contas. Para descrever o mundo com todos os vários sentimentos da pitada individual do destino, todas as várias atitudes espirituais deixadas de fora da descrição – sendo tão descritíveis quanto qualquer outra coisa – seria algo como oferecer uma nota impressa como o equivalente a uma refeição sólida. A religião não comete erros desse tipo … Um cardápio com uma uva passa de verdade em vez das palavras ‘uva passa’ e um ovo de verdade em vez da palavra ‘ovo’ pode ser uma refeição inadequada, mas pelo menos seria um início de realidade. O argumento da teoria da sobrevivência de que devemos nos ater a elementos não pessoais exclusivamente parece dizer que devemos nos contentar para sempre com a leitura do cardápio só … Isso não se segue, porque nossos ancestrais cometeram tantos erros de fatos e os misturaram com sua religião, que devemos, portanto, deixar de ser religiosos em tudo. Por sermos religiosos, estabelecemos a posse da realidade última nos únicos pontos em que a realidade nos é dada para vigiar. Afinal, nossa preocupação responsável é com nosso destino particular.” [9]

“Devemos, a seguir, ultrapassar o ponto de vista da utilidade meramente subjetiva e fazer uma investigação sobre o próprio conteúdo intelectual.

Em primeiro lugar, existe, sob todas as discrepâncias dos credos, um núcleo comum para o qual eles prestam testemunho por unanimidade?

E em segundo lugar, devemos considerar o testemunho verdadeiro?

Primeiro pegarei a primeira pergunta e vou respondê-la imediatamente em afirmativo. Os deuses guerreiros e as fórmulas das várias religiões realmente se cancelam, mas há uma certa libertação uniforme em que todas as religiões parecem se encontrar. Ela consiste de duas partes:

(1) Uma inquietude; e

(2) Sua solução.

1. A inquietude, reduzida aos seus termos mais simples, é uma sensação de que há algo errado conosco como naturalmente somos.

2. A solução é a sensação de que somos salvos do erro ao fazer a conexão adequada com os poderes superiores.

Nas mentes mais desenvolvidas, que são as únicas que estamos estudando, o erro assume um caráter moral e a salvação assume um tom místico. Acho que devemos nos manter dentro dos limites do que é comum a todas essas mentes se formularmos a essência de sua experiência religiosa em termos como estes:

O indivíduo, na medida em que sofre de seu erro e o critica, está, nessa medida, conscientemente além dele e, pelo menos, em contato possível com algo superior, se algo superior existir. Portanto, junto com a parte errada há uma parte melhor dele, embora possa ser apenas um germe dos mais indefesos. Com qual parte ele deve identificar seu ser real não é de forma alguma óbvio neste estágio; mas quando o Estágio 2 (o estágio de solução ou salvação) chega, o homem identifica seu ser real com a parte superior germinativa de si mesmo; e o faz da seguinte maneira: Ele torna-se consciente de que essa parte superior é contígua e contínua com um MAIS da mesma qualidade, que opera no universo fora dele, e com a qual ele pode continuar em contato ativo, e de certa forma entrar a bordo e se salvar quando todo o seu ser inferior tiver se despedaçado nos destroços.”[10]

Estas últimas linhas nos colocam cara a cara com o assunto deste volume, a saber: —

Frater P.[11]

Entrando em um assunto um tanto irrelevante, isto é o que realmente aconteceu com o compilador deste livro:

Por dez anos ele foi um cético, no sentido da palavra que geralmente é transmitido pelos termos infiel, ateu e não-conformista; então, de repente, em um único momento, ele retirou todo o ceticismo com que havia atacado a religião, e lançou-o contra o próprio não-conformismo; e assim como o primeiro se desintegrou como pó, agora o segundo desapareceu como fumaça.

Nessa crise, não houve doença da alma, nem divisão do self; pois ele simplesmente dobrou uma esquina na estrada ao longo da qual estava viajando e de repente percebeu o fato de que a poderosa cadeia de montanhas cobertas de neve a qual ele até agora carinhosamente imaginava estar contemplando era, afinal, apenas um grande banco de nuvens. Então ele continuou caminhando, sorrindo por causa de sua própria ilusão infantil.

Pouco depois, ele conheceu um certo irmão da Ordem da A∴A∴; e ele mesmo um pouco mais tarde tornou-se um iniciado do primeiro grau daquela Ordem.

Nesta Ordem, no momento de sua recepção, havia um certo irmão de nome P., que acabava de regressar da China e que há seis anos atrás havia sido enviado pela Ordem para viajar por todos os países do mundo, e naquele tempo, coletar todo o conhecimento possível no tocante às experiências místicas da humanidade. Este P. fez o melhor que pôde e, embora só tenha passado pela Europa, Egito, Índia, Ceilão, China, Birmânia, Arábia, Sião, Tibete, Japão, México e Estados Unidos da América, seu estudo havia sido tão profundo e seu entendimento tão exaltado que foi considerado pela Ordem que ele havia coletado material e testemunhos suficientes para compilar um livro para a instrução da humanidade. E como Frater N.S.F.[12] era um escritor de alguma habilidade, os diários e notas de Frater P. foram entregues a ele e a outro, e eles foram comandados a reuni-los de tal maneira que fossem úteis para o aspirante dos mistérios, e seriam como uma taverna em uma estrada repleta de muitos perigos e dificuldades, onde o viajante pode encontrar bom ânimo e vinho que fortalece e refresca a alma.

Portanto, espera-se sinceramente que este livro se torne um refúgio para todos, onde um guia pode ser contratado ou instruções livremente buscadas; mas com toda a devida solenidade a Ordem da A∴A∴ solicita que o buscador – não, ela ordena que o buscador – não aceite nada como Verdade até que ele prove que assim o é, para sua própria satisfação e por sua própria honra.

E ainda se espera que ele possa, ao fechar este livro, estar um pouco iluminado e, mesmo que como se fosse através de um vidro escuro, veja a grande sombra da Verdade além, e um dia entre no Templo.

Isso tudo quanto ao assunto; agora quanto ao objeto deste volume:

O Augœides[13]

“Lytton o chama de Adonai em Zanoni, e eu costumo usar esse nome nos meus cadernos.

“Abramelin o chama de Santo Anjo Guardião. Eu adoto esse termo:

“1) Porque o sistema de Abramelin é muito simples e eficaz.

“2) Porque, desde que todas as teorias do universo são absurdas, é melhor falar na linguagem de uma patentemente > absurda, de modo a mortificar a pessoa metafísica.

“3) Porque até uma criança consegue entender.

“Os teosofistas o chamam de Eu Superior, Observador Silente ou Grande Mestre.

“A Aurora Dourada o chama de Gênio.

“Os gnósticos dizem que é o Logos.

“Zoroastro fala sobre a união de todos esses símbolos na forma de um leão — consulte os Oráculos Caldeus[14].

“Anna Kingsford o chama de Adonai (Vestido com o Sol).

“Os budistas o chamam de Ādibuddha — (diz H.P.B.).

“O Bhagavad-Gita o chama de Viṣṇu (no Capítulo XI).

“O Yì Jīng o chama de ‘A Grande Pessoa’.

“A Cabala o chama de Jechidah.

“Também obtemos uma análise metafísica da natureza Dele, cada vez mais profunda, de acordo com a sutileza do > escritor; pois esta visão — é tudo o mesmo fenômeno, colorido de várias maneiras pelos nossos Ruachs[15] — > acredito eu, é a primeira e a última de todas as Experiências Espirituais. Pois, embora Ele seja atribuído a > Malkuth[16], e a Porta do Caminho de Sua ofuscação, Ele também está em Kether (Kether está em Malkuth e Malkuth > em Kether — ‘como é acima, é embaixo’), e o Fim do ‘Caminho dos Sábios’ é a identidade com Ele.

“De modo que, embora ele seja o Santo Anjo Guardião, Ele também é Hua[17] e o Dào[18].

“Pois uma vez que Intrā Nōbīs Rēgnum deĪ[19], todas as coisas estão em Nós mesmos, e toda Experiência Espiritual > é uma Revelação mais ou menos completa Dele.

“No entanto, somente no Pilar do Meio[20] que Sua manifestação é de alguma forma perfeita.

“A invocação de Augœides é tudo. Só que ela é tão difícil; percorre-se todos os cinquenta portões de Binah[21] ao mesmo tempo, iluminado em maior ou menor grau, iludido em maior ou menor grau. Mas o Primeiro e o Último são essa Invocação do Augœides.”

O Livro

Este Livro é dividido em quatro partes:

  1. As Fundações do Templo.
  2. Os Andaimes do Templo.
  3. O Portal do Templo.
  4. O Templo do Rei Salomão.

Três métodos de expressão são usados para iluminar e instruir o leitor:

  1. Símbolos pictóricos.
  2. Imagens verbais expressas metaforicamente.
  3. Fatos expressos cientificamente.

O primeiro método é encontrado anexado a cada um dos quatro Livros, equilibrando, por assim dizer, Iluminismo e Ciência.

O segundo método é encontrado quase inteiramente no primeiro Livro e as várias imagens são intituladas[22]:

  • A Torre de Vigia Negra ou o Sonhador.
  • O Avarento ou o Teísta.
  • O Esbanjador ou o Panteísta.
  • O Falido ou o Ateu.
  • O Puritano ou o Racionalista.
  • A Criança ou o Místico.
  • O Devasso ou o Cético.
  • O Escravo, ou aquele que está diante do véu do Pátio Externo.
  • O Guerreiro, ou aquele que está diante do véu da Pátio Interno.
  • O Rei, ou aquele que está diante do véu do Abismo.
  • A Torre de Vigia Branca, ou o Desperto.

O terceiro método é encontrado quase inteiramente no segundo Livro.

O terceiro e o quarto Livros deste ensaio consistem em imagens puramente simbólicas. Pois o neófito precisa descobrir por si só a Chave do Portal; e até que ele encontre a Chave, o Templo do Rei Salomão deve permanecer fechado para ele.

Valē!



  1. “Edouard Jérôme Récéjac.” ↩︎

  2. «De acordo com o Wiktionary, termo emprestado do francês com o sentido de “louco, insano, psicopata”.» ↩︎

  3. O Cristianismo primitivo tinha uma adaptabilidade maior do que qualquer outra religião contemporânea de assimilar para si tudo o que era mais particularmente pagão no politeísmo; o resultado disso foi que ele conquistou as grandes massas do povo, que eram na época, assim como são agora, inerentemente conservadoras. ↩︎

  4. Œuvres, ii. 320. O Prof. William James escreve: “Os grandes místicos espanhóis, que mantinham o hábito do êxtase tanto quanto ele costumava ser mantido, parecem em sua maioria ter mostrado espírito e energia indomáveis, e ainda mais para os transes no qual eles se entregavam”.

    Escrevendo sobre Santo Inácio, ele diz: “Santo Inácio era um místico, mas seu misticismo o tornava seguramente uma das mais poderosas máquinas humanas práticas que já existiram” (As Variedades da Experiência Religiosa, pp. 377-378).

    «As Variedades da Experiência Religiosa: um estudo sobre a natureza humana. Consulte uma tradução completa deste livro lançada pela editora Cultrix, São Paulo. 2017. As referências tiveram o número da página adaptado para esta edição em português.» ↩︎

  5. “Nas ciências naturais e nas artes industriais, nunca ocorre a ninguém tentar refutar opiniões mostrando a constituição neurótica de seu autor. As opiniões aqui são invariavelmente testadas pela lógica e pela experiência, não importa qual seja o tipo neurológico de seu autor. Não deveria ser diferente com as opiniões religiosas.” – As Variedades da Experiência Religiosa, p. 28. ↩︎

  6. “O Dr. Maudsley é talvez o mais inteligente dos refutadores da religião sobrenatural com base na origem. No entanto, ele se vê forçado a escrever (Natural Causes and Supernatural Seemings, 1886, pp. 256, 257):

    ‘Que direito temos de acreditar na Natureza sob qualquer obrigação de fazer o trabalho dela por meio de mentes completas apenas? Ela pode achar que uma mente incompleta é um instrumento mais adequado para um propósito particular. É o trabalho que é feito, e a qualidade no trabalhador pelo qual foi feito, isto é, o único no momento; e pode não ser grande coisa do ponto de vista cósmico se em outras qualidades de caráter ele for singularmente defeituoso – se de fato ele fosse hipócrita, adúltero, excêntrico ou lunático, … Voltamos para casa novamente, então, para o antigo e último recurso da certeza – ou seja, o consentimento comum da humanidade, ou dos competentes por instrução e treinamento entre a humanidade.’

    Em outras palavras, não é a origem, mas sim a maneira como funciona como um todo, que é o teste final do Dr. Maudsley de uma crença. Este é nosso próprio critério empirista; e os mais fortes defensores da origem sobrenatural também foram forçados a usar este critério no final.” – As Variedades da Experiência Religiosa, pp. 29-30.

    Coloquialmente falando, “a prova do pudim está em comê-lo”, e é pura perda de tempo repreender o cozinheiro antes de saborear seu prato. ↩︎

  7. Ou Pirro-Zoroastrismo. ↩︎

  8. “Temos que confessar que a parte dela [da vida mental] que o racionalismo pode dar conta é relativamente superficial. É a parte que tem o prestígio, sem dúvida, pois ela tem a loquacidade, pode desafiá-lo para ver as provas, cortar a lógica e colocá-lo no chão com palavras. Mas ele não conseguirá convencê-lo ou convertê-lo do mesmo jeito se suas intuições tolas se opõem às conclusões. Se você tiver intuições, elas vêm de um nível mais profundo de sua natureza do que o nível loquaz em que o racionalismo habita.” – As Variedades da Experiência Religiosa, p. 77. ↩︎

  9. As Variedades da Experiência Religiosa, pp. 451-454. ↩︎

  10. As Variedades da Experiência Religiosa, pp. 460, 461. ↩︎

  11. «Perdūrābō, latim para “eu perdurarei”, é o mote ou nome mágico assumido por Aleister Crowley ao ser iniciado na Ordem Hermética da Aurora Dourada em 1898.» ↩︎

  12. «Nōn Sine Fulmine, “não sem relâmpago”, o mote mágico do Major-General John Frederick Charles Fuller, como Adeptus Minor 5=6 da A∴A∴. Ele havia recebido este grau honorário para atuar como Cancellārius da Ordem, porém nunca havia realmente avançado além do grau de Probacionista 0=0, onde operava com o lema mágico de Per Arduā, “através das dificuldades”.» ↩︎

  13. De uma carta de Fra P. ↩︎

  14. “Um Fogo semelhante intermitentemente se estendendo através do ímpeto do Ar, ou um Fogo sem forma de onde vem a Imagem de uma voz, ou até mesmo uma Luz piscando abundante, revolvendo, girando, bradando em voz alta. Também há a visão do Cavalo de Luz flamejante, ou também de uma Criança, elevada nos ombros do Corcel Celestial, fogosa, ou vestida de ouro, ou nua, ou atirando com o arco flechas ou luz, e de pé nos ombros do cavalo, então se a tua meditação se prolongar, tu unirás todos estes símbolos na forma de um Leão”. ↩︎

  15. Ruach: a terceira forma, a Mente, o Poder de Raciocínio, aquela que possui o Conhecimento do Bem e do Mal. ↩︎

  16. Malkuth: a décima Sephira. ↩︎

  17. O título supremo e secreto de Kether. ↩︎

  18. O grande extremo do Yì Jīng. ↩︎

  19. I.N.R.I. ↩︎

  20. Ou “Suavidade”, o Pilar à direita sendo o da “Misericórdia” e o da esquerda “Justiça”. Eles se referem à Árvore da Vida Cabalística. ↩︎

  21. Binah: a terceira Sephira, o Entendimento. Ela é a Mãe Superna, distinta de Malkuth, a Mãe Inferior. (Nun) é atribuído ao Entendimento; seu valor é 50. Consulte O Livro do Mistério Oculto, seção 40 “em A Kabbalah Revelada de Knorr von Rosenroth”. ↩︎

  22. Nove figuras entre as Trevas e a Luz, ou onze ao todo. A união do Pentagrama e do Hexagrama deve ser observada; também o nome de onze letras ABRAHADABRA; 418; Achad Osher, ou Um e Dez; as Onze Sephiroth Aversas; e Adonai. ↩︎


Capítulo traduzido por Alan Willms em abril de 2021.

Gostou deste artigo?
Contribua com a nossa biblioteca